Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde 2013, Sérgio Luiz Kukina esteve em Joinville no dia 20 de novembro para falar aos estudantes de direito da UniSociesc sobre a proposta de emenda constitucional (PEC) 171, que propõe a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos.

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Especialista e autor de livros que tratam dos direitos da criança e do adolescente, Kukina procurou aproximar os alunos do ensino particular a uma realidade social que não condiz com a que a maioria deles vive. Com irreverência e bom humor, o ministro fugiu da teoria e trouxe a experiência de quase 30 anos como promotor de justiça do Ministério Público do Paraná. Ele deixou claro que não é a favor da PEC 171 e que acredita na eficiência do ECA se ele for bem aplicado.

As questões que envolvem a criminalidade na adolescência, tema da reportagem especial A Segunda Chance, publicada em setembro deste ano pelo jornal “A Notícia“, também foram discutidas com o ministro em entrevista exclusiva.

A Notícia – Durante a palestra, o senhor destacou as diferenças sociais que existem no País. Como avalia a distância entre as classes e a falta de conhecimento das pessoas em relação a realidades diferentes nas quais elas vivem?

Kukina – A realidade que a gente vivencia no País ainda é a dos guetos, dos bolsões que não se conversam. Se você pegar o seu carro hoje e andar com ele 15 minutos para qualquer lado, vai se deparar com toda ordem de dificuldades e carências. É como falar de reforma agrária: você pega e fala: “Esse lote é seu”. É como se você desse o cigarro e não desse o fósforo para acender. Ele ganha (o lote) e vai fazer o quê? Isso é meia política. A política pública precisa ser completa. O que justifica essas diferenças sociais é a ausência do Estado. E no vácuo do poder vai haver um movimento orientado por empoderamento de um segmento social e alguém vai se fazer presente.

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A Notícia – O senhor acredita que essa falta de políticas públicas leva o adolescente para o mundo do crime?

Kukina – Favorece e potencializa a chance de que ele ache mais interessante ser captado por alguém que tenha finalidades escusas, porque o resultado é mais imediato. Ele pensa: “Por que eu vou estudar? Ninguém da minha família estuda, meus tios estão todos na penitenciária. Agora, se eu trabalhar com aquele sujeito, daqui um mês vou poder comprar um tênis novo”. O apelo é muito forte. Então, por que o bacana que fez pós-graduação no exterior cai na malha da criminalidade dourada? É a insaciabilidade do ser humano. Na classe desfavorecida não é tanto uma fome de progressão na pirâmide social, tem mais a ver com satisfação de necessidades básicas. Não acho que seja uma justificativa, mas eu compreendo o fenômeno. Agora, eu não compreendo e não aceito o pessoal da gravata: se estivesse faltando para eles, mas não está faltando.

A Notícia – Qual é a avaliação do senhor com relação ao sistema socioeducativo?Kukina – Nós demoramos muito para voltar os olhos à questão do cumprimento das medidas socioeducativas. Elas têm propostas boas que vão de mãos dadas com uma finalidade pedagógica. Mas nós perdemos muito tempo, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é de 1990. E a lei que orienta o cumprimento das medidas só veio em 2012. Nós ficamos 22 anos patinando até que aprovassem a lei do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) e ainda com muita crítica. Eu acho que é um bom encaminhamento, você tem uma lei que precisa ser posta à prova, para você poder saber se ela poderá receber o selo de validade ou não.

A Notícia – Então, o senhor acredita que o ECA não precisa de alteração?

Kukina – Não vejo que ele precise de alteração substancial. O que eu queria mesmo é que houvesse um comprometimento dos setores governamentais em dar concretude em tudo o que o ECA promete. Por que eu quero revogar uma lei se eu nem deixei ela produzir os efeitos? Eu preciso submetê-la ao teste de validade. Um automóvel, para entrar no mercado, fica dez anos submetido aos testes. E nós queremos substituir uma lei que nós nem demos oportunidade para que ela efetivamente fosse posta à prova!?

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A Notícia – O senhor deixou claro que não é a favor da proposta de redução da maioridade penal. Mas o senhor acha que estamos caminhando para isso?

Kukina – Eu estou muito preocupado. Talvez não mais neste ano, por causa da instabilidade política que está assolando o País. Mas, quando ela vier à baila, receio que haja muita dificuldade para impedi-la. Ainda que essa redução seja apenas para os crimes violentos, hediondos, o problema é que “onde passa um boi, passa uma boiada”.

A Notícia – E por que o senhor não concorda com a proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos?

Kukina – Porque eu acho que você penalizaria duplamente o adolescente infrator. Quando vejo o perfil dos que estão lá nas unidades de internação, eles estão lá exatamente porque o ECA não foi cumprido como deveria. As políticas não foram implementadas a contento. Aí eu digo assim: “Olha, que pena, você que não teve as políticas adequadamente implementadas, você se viu privado de escola e saúde mais eficientes e por isso você se encaminhou para o crime. Então, agora, vai ser punido de novo”. Vai ser punido porque negaram os direitos prometidos na Constituição e no estatuto, e aí o garoto acaba sendo duplamente punido. O garoto não tem uma base sólida de atendimento no campo das políticas públicas elementares e aí ele resvala (para a criminalidade) com mais facilidade. Não estou dizendo que os nossos (jovens) não fazem as mesmas coisas, fazem. Só que a gente tem lá paliativos e eles não aparecem nas estatísticas. Como esse é mais vulnerável, não tem como se defender, não tem família estruturada e é mais facilmente é apanhado pelo sistema.

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A Notícia – Na opinião do senhor, quais medidas deveriam ser tomadas para reduzir a discrepância social?

Kukina – A primeira coisa seria acabar com esses desmandos, esses acertos no trato do dinheiro público. A verba pública é sagrada. Enquanto a gente tiver esses focos de sangria do dinheiro público, até em tragédia, porque desliza terra aqui em SC, daqui a pouco você vê que estão desviando fralda e roupa. É um mal que não está só em Brasília: o corrupto está aqui na esquina, é muito triste isso, é endêmico do Brasil. Porque até hoje existe essa sensação de impunidade. Então é preciso que os exemplos se fortaleçam, que a população comece a frequentar mais as câmaras. Eu preciso ver o que o político que eu elegi está fazendo. “Mas eu não vou nem na reunião de condomínio do meu prédio. Eu não vou na escola quando chamam, estou pagando a escola, eles é que têm que educar, eu terceirizo a educação do meu filho”. Então, a escola vai dizer: “Que legitimidade você tem para reclamar quando chamei a polícia para prender o seu filho, se quando eu quis te alertar você não veio?”. Nós temos esse mau hábito do individualismo ainda muito presente. Nós somos daquele tipo: “Quando conquistei meu quinhão, eu não olho mais para trás. Se um dia fui pobre, não me lembro”. É uma pena.

Durante mais de um ano, o jornal “A Notícia” acompanhou a história de Perdiz, um adolescente apreendido por assalto à mão armada e internado no sistema socioeducativo de Joinville aos 17 anos, em maio de 2014. Dentro do sistema, ele foi agressivo, participou de uma tentativa de fuga, ficou de castigo e tentou tirar a própria vida.

Especialistas defendem a discussão sobre violência em Joinville

Mas também foi lá dentro que retomou os estudos e recebeu acompanhamento psicológico e social. No meio do caminho, descobriu que seria pai: um divisor de águas em seu comportamento. Em junho de 2015, aos 18 anos, voltou para casa e ao convívio social.

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Agora, Perdiz ganhou o que muitos jovens brasileiros como ele não têm: uma oportunidade para recomeçar. A trajetória dele até aqui indica três possibilidades de final para a história: 1) reintegrar-se à sociedade; 2) reincidir no crime e acabar no presídio; ou 3) virar mais um número na estatística de jovens mortos por envolvimento com a criminalidade. Cabe a ele escolher o caminho do futuro.