Damien Cave*
Emma Shearman segurou o arpão e se concentrou na respiração. “Inspira, expira, relaxa”, ela pensou. Profunda e constantemente, no mesmo ritmo das ondas. Ela mergulhou no Pacífico gelado que banha a costa rochosa de Sydney, prendendo a respiração até chegar à profundidade de dez metros. Em silêncio e com calma, levantou a arma, apontou e atirou, acertando um morwong vermelho bem no meio.
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Foi o segundo peixe do dia. O amigo dela, Tim Charody, que lhe ensinara a pesca submarina durante o período de confinamento na Austrália, já tinha pegado outro morwong, comum nessas águas. Mas foi o mergulho mais profundo de Shearman, e ela subiu à tona toda orgulhosa, exibindo a presa que segurava pelas guelras.
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– É uma questão de verdadeira coragem e confiança saber que posso conseguir meu próprio alimento e, ainda assim, fazer coisas femininas – dançar salsa, usar salto alto. É um desafio, mas também serve como meditação – disse ela quando estávamos de volta à terra firme.
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Eu me juntei a eles um dia, bem cedo, por curiosidade. Já faz alguns meses, desde o início do primeiro isolamento, que tenho visto mais e mais pessoas com arpão na mão entrando e saindo das águas que banham Sydney. De fato, um dia quase dei de cara com um sujeito que carregava um em uma mão e um salmão australiano na outra no meu bairro, o que me levou a questionar o que estava acontecendo com todos esses Poseidons.
Há muito tempo, Sydney é a cidade das pranchas de surfe dentro dos carros e chinelo de dedo nas calçadas. O mar aqui é tipo aquele vizinho que você vê em todo lugar. Aparece nos cantinhos mais inesperados da costa irregular e avança vários quilômetros rumo ao interior, ao longo de um cais em formato de folha de carvalho – como observou Mark Twain, em 1897, ao descrever os tons de azul como “de uma beleza soberba”.
Todos aqueles arpões pareciam introduzir um clima mais profundo e sombrio na cidade. Pelo menos foi o que achei. De fato, em tempos de aumento de desemprego e restrições a esportes em grupo e reuniões sociais, a pesca submarina está se tornando uma fuga cada vez mais popular para aqueles que procuram calma, controle e alimento longe das ansiedades de terra firme. Tanto que o equipamento está em falta em muitas lojas especializadas desde março. Jovens e velhos, homens e mulheres, estão todos encontrando algo para o estômago e a alma nesse ato tão antigo e ao mesmo tempo tão elementar.
– Tem tudo a ver com essa coisa de viver com o que o mar nos dá. É aquele momento de recuperar o fôlego, longe da cidade grande – diz Robert Cooley, de 53 anos, praticante da atividade desde sempre e líder dos Gamay Rangers, grupo aborígene que ajuda a proteger e cuidar de Botany Bay, na região sul da cidade.
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Alto, falante e cheio de histórias para contar, ele revela que a equipe de seis agentes já fez bom uso da habilidade com o arpão: durante o auge do confinamento, em abril, a pesca subaquática se tornou serviço comunitário. Entre peixes, lagostas e moluscos, pegaram o equivalente a três mil refeições, distribuídas para os vizinhos mais necessitados.
– Foi um trabalho essencial. Tem muito idoso que vive só, outros não podem nem sair de casa – explica Cooley.
Um dia, ao nascer do sol, eu o encontrei na baía em que pegou a primeira chata, quando ainda era garoto. Horas depois, chegaram alguns agentes ao local em que James Cook atracou, em 1770, reunindo as culturas europeia e aborígene pela primeira vez. Cooley vestiu a roupa de neoprene na virada da esquina onde fica uma estátua de baleias jubartes, animal importante para os grupos indígenas locais, em um ponto da baía oposto ao porto comercial da cidade e seus guindastes gigantescos.
Cooley e mais dois agentes mergulharam de cabeça, usando as nadadeiras longas e os cintos de lastro para ajudá-los a dar busca entre as rochas e sob as plataformas irregulares do rebordo costeiro. Em vários lugares, é permitido o uso do equipamento de mergulho (tanques). Na Austrália, isso é considerado trapaça. A habilidade e o prazer da atividade são resultado da elasticidade dos pulmões.
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“Experiência equivale a uma terapia”, diz pescador
A maioria aprende com os amigos, mas fiz aula com dois instrutores de 14 anos, sendo um deles Fábio Leitão, um açoriano de rabo de cavalo, que me deu a dica: se eu não inalasse o ar com força nem hiperventilasse, conseguiria manter o fôlego mais tempo. Por isso, quando um dos homens me sinalizou a presença de uma lagosta, eu estava pronto. Normalizei a respiração e desci, prendendo-a o quanto pude.
A dita-cuja, pequenina, estava presa em uma fenda estreita. Tentei puxá-la, não consegui – e nem vou poder me gabar no Instagram, já que não peguei nada em nenhuma das incursões para a reportagem –, mas, com mais algumas tentativas, o pessoal conseguiu soltá-la.
– Meu supermercado é mais seguro do que o que você frequenta – comentou Cooley.
Em relação ao coronavírus, ele está certo, claro, mas não se pode dizer que a pesca submarina esteja livre de riscos. Os tubarões são brutamontes preguiçosos que pegam o peixe que já foi atingido. O apagão de água rasa – como é conhecido o desmaio subaquático – pode acabar em afogamento se não houver ninguém por perto para ajudar. Parece que foi exatamente isso que aconteceu com Alex Pullin, campeão olímpico de snowboard de 32 anos que morreu enquanto mergulhava sozinho, em julho.
Mas apesar de tantos riscos há também os benefícios. Em Sydney, os peixes comestíveis se encontram a apenas alguns metros de profundidade, e a submarina é a versão mais sustentável da pesca, já que não deixa iscas nem resulta em capturas acidentais, como no caso da rede. Muitos “spearos”, como são chamados os praticantes, têm grande orgulho de poder sustentar a família com o que pescam.
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Na Adreno de Sydney, maior loja de equipamentos para pesca submarina da Austrália, um dos funcionários, Jayden Nightingale, 22 anos, me conta que mergulha três vezes por semana e que daqui a pouco ia se arriscar na água para pegar o jantar da festa de aniversário do irmão.
– Minha mãe pediu polvo – explica.
Nightingale me diz que, para ele, a experiência equivale a uma terapia.
– O mar é um mundo diferente. É relaxante porque você está sintonizado com a natureza – descreve ele, cercado de prateleiras vazias, resultado do aumento recente do interesse na atividade.
Em tempos de tanta incerteza em terra firme, só isso já seria o suficiente para levar muita gente para a água.
*The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
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