Fim de uma tarde cinzenta e fria. Três toques na tela do celular e, numa fração de segundos depois, a comunicação está estabelecida. Do outro lado, está um dos jornalistas brasileiros que mais conhecem do cotidiano norte-americano. Caio Blinder é um dos “fundadores” do Manhattan Connection, um dos mais tradicionais programas do canal por assinatura Globonews. Integra o time de participantes desde que o programa entrou no ar, em 1993.
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Bem antes disso, já vivia na terra do Tio Sam. O paulistano de 62 anos vive há três décadas nos Estados Unidos. Da casa dele, em Nova Jersey, Blinder atendeu a reportagem, por telefone, para falar sobre o momento vivido pelos norte-americanos, marcado pela pandemia, por crise econômica e manifestações por todo o país por conta da violência policial e o racismo, tendo como estopim o homicídio de George Floyd, durante uma abordagem da polícia.
Confira na entrevista a seguir:
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Os Estados Unidos lideram o triste ranking de casos confirmados e mortes por Covid-19 no mundo. Praticamente um a cada três casos, assim como óbitos, no planeta, ocorreram nos EUA. Na sua opinião, a que se devem esses números?
A doença foi uma onda, foi atravessando o mundo, chegando a cada continente. Era inevitável um grande número de casos aqui, pelo número de turistas americanos e europeus, nos Estados Unidos e na Europa, e o atraso da resposta oficial americana. Acho que o governo Trump tem muita culpa no cartório por ter desprezado a doença no começo, algo semelhante ao “era uma gripezinha”. Foram dois meses fatais, janeiro e fevereiro, porque as primeiras providências poderiam ter sido adotadas no país. E atingiu em cheio, de cara, uma área densamente povoada, que foi aqui em Nova York. Com muitos aeroportos, muita circulação de gente nos transportes coletivos, ou seja, um local ideal para o estrago causado pelo vírus, além de ter atingido outras partes do país.
Mas o essencial a história vai mostrar: o atraso na resposta foi fundamental, como também em outras países. A China sofre no começo, ela mentiu muito, acobertou, mas agiu de forma rigorosa. Você não pode confiar em todos os números da China, mas ela deu conta do recado. A Itália também não agiu bem no começo e a gente viu a tragédia que foi na Itália. Todo o país que depois agiu com rigor, usando a tecnologia, achatou a curva. A gente vê isso agora, especialmente nos estados americanos mais afetados, na região nordeste dos EUA.
Que análise você faz do desempenho de Donald Trump durante a pandemia?
Muito ruim, né? O Trump não nasceu para esse tipo de coisa, você tem que dar voz total aos especialistas, à comunidade científica, e ele colocou como foco de tudo, antes de combater a doença, tentar manter a “saúde” da economia e fez esse estrago. A prioridade dele é a economia, nunca foi a doença e não soube governar o país. Esse aqui é um país grande, com dimensões continentais, os estados têm muita relevância porque é uma estrutura descentralizada, mas como ele abdicou da sua liderança nacional, realmente o papel dos estados e governadores ficou muito grande. Ou seja, a junção da incompetência do Trump, com o seu narcisismo, que não queria assumir a responsabilidade, o trabalho duro, penoso, ficou nas mãos de governadores.
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Um cenário não muito diferente daqui do Brasil. O que nós podemos aprender com a pandemia nos Estados Unidos?
Não siga o Trump. A resposta é fácil. E é isso que o (Jair) Bolsonaro sempre fez. Até comentei no Manhattan Connection, que o Bolsonaro consegue ser até mais estúpido que o Trump. O Trump, por exemplo, não usa máscara. Ele acha que é politicamente incorreto usar máscara. Mas não é tão idiota como o Bolsonaro, que se enfia numa carreata e sai abraçando todo mundo no meio da multidão. Ele (Trump) ficou apregoando remédios miraculosos como a hidroxicloroquina, ele até tomou, mas não demitiu o ministro o Saúde que alertou que isso não era cura miraculosa. O Bolsonaro consegue ser pior do que o Trump nessas horas. Nós estamos sentindo o impacto disso no Brasil agora, infelizmente.
Trump está no último ano de gestão, quais pontos você indicaria como mais fortes e quais os mais frágeis do governo dele?
Sou muito crítico do Trump, eu não vejo pontos fortes. Nada. Ele surfou numa onda econômica positiva da era Obama. Algumas decisões econômicas que ele adotou foram positivas a curto prazo porque vitaminaram a economia. Ele cortou os impostos. Isso ajudou o país, mas o país cortou os impostos numa época muito boa. E agora ele vai sentir o impacto, porque ele vai ter que aumentar os impostos novamente, não tem como não aumentar, para pagar essa conta, do resgate do auxílio-desemprego. Ele vive outro país.
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Uma crise como essa, que você mistura a maior crise sanitária desde 1920, a maior crise econômica desde 1930 e agora acrescido a isso os distúrbios urbanos, raciais, você precisa ser um super estadista para conduzir o país nessas horas. E o Trump não é Roosevelt, não é Churchill, não é ninguém. Ele é um ditador de reality show. Literalmente caiu a máscara. Você precisa de alguém que uma o país, que fale pelo e para o país, e ele fala para a facção dele. Ele é muito parecido com o Bolsonaro, só que ele é mais perigoso, porque ele dirige o país mais importante do mundo.
Se você pudesse definir Trump em uma palavra, qual seria?
Vigarista. Chamo ele de vigarista.

As eleições norte-americanas estão previamente marcadas para novembro. Elas ocorrerão? Se sim, o que o que o mundo pode esperar do pleito?
Não pode mudar, só se o Congresso mudar, e o Congresso não vai mudar, o Congresso tem maioria democrata. Sobre a eleição, aquela coisa… O Trump, como se diz, ele é teflon: tem uma capacidade de sobrevivência, apesar de ser o que é, incrível. Se você pegar as pesquisas, ele está mais ou menos em termos de aprovação popular onde sempre esteve, por volta de 42%. Ele jamais teve a maioria do apoio popular, nunca. A avaliação da aprovação dele varia muito pouco, ou seja, ele é um cara muito forte. E depende muito como o país vai ler a situação em novembro.
Obviamente, ele não é o culpado pela pandemia. Pode haver uma indulgência com o Trump. Depende se a recuperação de forma mais ou menos robusta em novembro. É ruim a situação. O desemprego pode estar muito alto em dezembro e nós, obviamente, vamos terminar o ano em recessão ou até depressão. A chance dele é pequena, mas não é um absurdo. A base dele é muito fiel. Tem pesquisas que mostram que o eleitor do Trump é muito mais entusiasmado sobre o seu candidato do que o eleitor do oponente, que é o (Joe) Biden.
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Os EUA enfrentam dias tumultuados desde a morte de George Floyd, em Minneapolis, com protestos em diversas regiões do país, em muitos deles com confrontos e violência. Que leitura você faz desse momento?
Esse é o momento mais grave desde 1968. É a tempestade perfeita: pandemia, depressão econômica e distúrbios raciais. Acho que a panela de pressão abriu, tudo explodiu. Acho que as autoridades foram surpreendidas, usando um trocadilho com o vírus, pela virulência dos protestos. Tem muita violência policial, tem muito racismo, agora esse país avançou muito. Então, você espera que agora se aplique a resposta das autoridades federais, estaduais e municipais. Ou seja, instaurar a ordem pública, sem embasbacar a população e ao mesmo tempo tomar conta da necessidade de mais reformas policiais, você talvez consiga acalmar a situação nos próximos dias ou semanas. Mas essa semana ainda vai ser muito explosiva.
O alastramento dos protestos vai ter um impacto político-eleitoral muito grande. É o que o Trump está tentando fazer. Ele está atribuindo a violência, ou seja, “as cidades americanas estão foram de controle”, e as cidades americanas de uma forma geral são governadas por democratas, “eles são fracotes, eles não sabem enfrentar essa turba nas ruas”. E acusa, sem evidências, grupos de extrema esquerda de estarem orquestrando os protestos. Não tenho dúvidas de que tenha extremistas de esquerda e direita manipulando essa situação, por oportunismo de ver o circo pegar fogo.
Mas acho que tudo que está acontecendo é muito espontâneo, a implosão que está acontecendo é uma coisa orgânica. E juntando com as pessoas que estavam em casa enfurnadas, estão desempregadas, sem fazer nada, juntou tudo isso. E a cena bárbara da morte do (George) Floyd, tudo isso é um coquetel explosivo.
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Os protestos registrados nos últimos dias servem para trazer o tema à tona na busca por soluções ou, do contrário, acirram ainda mais os ânimos?
Infelizmente, eles sequestram o foco. O foco tem que ser no racismo, na brutalidade policial, só que algumas pessoas, de forma espontânea e também extremistas com interesses políticos, tentam sequestrar o foco. Não ser mais o que causou o problema, que foi a morte do (George) Floyd, passa a ser a baderna. Os baderneiros estão usando de forma… Especialmente o Trump, que faz esses discursos atabalhoados, de que ele quer mandar tropa, como se fosse problema militar. Ele nem pode fazer isso. Como se o morador de alguma cidade fosse o seu inimigo. Isso é problema social, não problema militar.

Nos últimos dias, Trump assinou uma ordem executiva redefinindo as proteções legais dadas às redes sociais, numa queda de braço com as plataformas, que recentemente adicionaram links de verificação de fatos em publicações dele. Trump estaria tentando institucionalizar as fake news?
Ele é a fake news. Em um cálculo do Washington Post, desde que ele tomou posse foram 19 mil declarações falsas ou enganosas. Mas o que ele fez é irrelevante, é muito mais uma postura política. Ele não pode censurar, ele não pode ameaçar uma empresa privada. A primeira emenda da constituição se refere que o setor público não pode regular sozinho a mídia. Ele não pode interferir numa empresa privada como o Twitter ou qualquer outra. É muito mais uma encenação e para agradar a base eleitoral, de que a imprensa e as mídias sociais são de esquerda, que prejudicam as vozes conversadoras.
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Vivemos um momento em que a informação é primordial, seja para a prevenção ou para salvar vidas. Ao mesmo tempo, nas redes sociais há quem atue para desinformar, disseminar notícias falsas e atacar o jornalismo e a liberdade de imprensa. Como você lida com isso?
Esse é grande paradoxo da nossa profissão: nós nunca tivemos tanta informação e tanto acesso fácil à informação, em contrapartida veio esse vírus junto, que é a desinformação. Nunca tivemos tanta desinformação feita de forma estonteante. Isso com a ajuda de profissionais, de grupos, de governos. A gente sabe como a Rússia atua nisso aí, como se tem o gabinete do ódio no governo Bolsonaro (que é alvo de investigação da Justiça), como o Trump é um super disseminador de notícias falsas, ele que tem 80 milhões de seguidores no Twitter.
As pessoas vivem hoje em bolhas de informação, o que é um problema. Seja conteúdo no WhatsApp, ou se você acompanha a rede de televisão A ou B, ou jornal X ou Y, você recebe uma versão dos fatos totalmente distinta da outra. Então, as pessoas vivem em tribos de informação e desinformação, e não há como convencer a outra pessoa do resto.
Mas a melhor coisa que nós temos que fazer é promover a imprensa profissional. A gente não é perfeito, a gente erra, nós temos nossos preconceitos, ideologias, mas tentamos filtrar as coisas que passam pela porteira, o que é mais verdadeiro do que é mais falso, porque esse vírus da desinformação está espalhado.
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O lançamento do foguete da SpaceX com a Nasa no último dia 30, surge como uma tentativa de retomar a supremacia norte-americana na corrida espacial. É um futuro novo grande passo para a humanidade que estamos próximos de ver, conforme está anunciado pelo Trump?
Faz parte da agenda política dele (Trump). Existem pessoas visionárias, como o (Elon) Musk (CEO da SpaceX), que é uma pessoa muito polêmica em outras coisas. Não sou o fã mais ardoroso por programa espacial, acho que temos outras prioridades aqui em baixo na terra, mas você não tem como fugi desse magnetismo, desse espírito de aventura e emoção do ser humano. Faz parte da gente. “Por mares nunca dantes navegados”, Camões já falou. Em termos políticos é muito importante, por duas razões: os americanos querem se livrar da dependência russa no programa espacial, e é a primeira vez que você tem uma iniciativa privada nesse processo, acho positivo.