A Covid-19 ainda não atingiu o pico em Santa Catarina. Mas dados de março do ano passado do Cadastro Único – instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda – apontam para um enfrentamento difícil. Santa Catarina tem 98.648 famílias vivendo em situação de miséria, ou seja, pessoas que vivem com uma renda domiciliar de até R$ 145 por mês. Isso aponta para cerca de 400 mil pessoas em situação de extrema pobreza.

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Mais grave ainda se levado em conta as pessoas que nem sequer estão no Cadastro Único, como moradores de rua e de ocupações não regularizadas. O mesmo cadastro indica 51.083 famílias em situação de pobreza, com ganhos entre R$ 145 e R$ 420 mensais por domicílio. Dos cadastrados, 388.508 famílias vivem com até três salários mínimos.

A falta ou baixa renda não vem sozinha. Dados sobre abastecimento de água, escoamento sanitário e destino do lixo não atingem os 100% desses catarinenses. Embora os números sejam bem positivos – entre 97 e 98% – são justamente os sem água e banheiro que ficam mais expostos a vírus e bactérias. O lixo é outro problema de saúde pública, especialmente levando-se em conta doenças como dengue: 20% das famílias cadastradas não possuem coleta diretamente em suas residências.

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Outro problema que pode tornar a pandemia do coronavírus mais trágica em Santa Catarina é o déficit habitacional. Os números apontam ser de 203.724 moradias inadequadas, sendo que 50.885 destes imóveis estão localizados em áreas de risco. Os dados são de 2019 e fazem parte de um diagnóstico da Secretaria de Desenvolvimento Social e envolveu municípios de diferentes regiões do Estado.

O que os técnicos levantaram, explica Cinthia Ferrari Angeli, gerente de Projetos Habitacionais da Secretaria de Desenvolvimento Social, é que há moradias de todos os tipos: madeira, lona, zinco. Outra situação grave é a falta de banheiros. Além disso, muitas destas estão em áreas de risco. Há um cálculo do setor sobre a necessidade de R$ 10 bilhões para zerar o déficit, valor que não há no tesouro estadual.

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Isolamento social x fome

Isolamento social não é fácil para ninguém. Imagine para quem vive em lugares de maior vulnerabilidade. Não só pelas questões estruturais – moradias grudadas e falta de saneamento básico – mas pelas condições sociais das famílias. O fechamento de escolas, associações e cooperativas atingiu milhares de filhos de pais que dependem da informalidade. A segurança alimentar entrou em risco. Sem qualidade nutricional a imunidade baixa e o coronavírus pode se tornar ainda mais letal.

– A situação é caótica. Estamos ajudando famílias que realmente não tem o que comer- conta a assistente social Michelle Karine Setúbal, da Casa São José, bairro Serrinha, Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis.

A entidade atende 190 crianças e adolescentes, com idades entre seis e 15 anos, que frequentam o espaço no contra turno escolar. Além de participar de atividades pedagógicas, artísticas, culturais, esportivas, as crianças fazem refeições. Desde a inauguração, em 2003, a casa é referência para as famílias. Mas nos últimos anos, conta a assistente social, a situação piorou porque os pais perderam o emprego e foram empurrados para atividades sem carteira assinada.

Mesmo sem atividades por causa das medidas restritivas, a Casa São José tem procurado manter os vínculos. Semanalmente são distribuídos alimentos e produtos de higiene. Através de uma linha de apoio emergencial criada pelo Instituto Comunitário da Grande Florianópolis (Icom) foi possível captar recursos para algumas compras. Na Sexta-Feira Santa foram distribuídas 100 bandejas de ovos de galinha.

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– Em outras épocas faríamos a distribuição de ovos de chocolate, mas desta vez foi necessário pensar em algo para toda a família – conta Michelle.

A pandemia tornou mais visível a presença dos voluntários:

– As famílias estão sendo socorridas por grupos de pessoas que sobem o morro e trazem cestas básicas – diz Helio Samuel de Medeiros, presidente da Associação dos Moradores da Servidão Farias, proximidades da Avenida Mauro Ramos.

Helio conta que ações solidárias ocorrem em outras épocas do ano. Mas que desta vez os conteúdos chegam com uma mensagem humanitária.

– O kit de higiene com água sanitária, sabão e detergente mostra preocupação com a prevenção, e prevenção ajuda a salvar vidas.

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Sem água e em apuros

– Como é que o povo vai estar sempre lavando as mãos, como os médicos dizem, se em comunidades como o Jagatá, por exemplo, falta água e a gente tem que levantar na madrugada para encher baldes e bacias? – pergunta Sulimar Alves, líder comunitário e ex-presidente da Associação dos Moradores do Jagatá, no Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis.

Mesmo reconhecendo melhorias trazidas pelas obras do PAC, agora interrompidas, Alves acredita que o isolamento social contribui para mostrar as dificuldades que caracterizam as comunidades mais vulneráveis na Capital.

– Não temos uma área de lazer para os meninos, o que faz com eles para soltar pipas caminhem por cima de muros e telhados. E se houver um acidente? – indaga ele.

No Jagatá moram cerca de 600 famílias, quase todos autônomos e muitos poucos trabalhadores com carteira assinada.

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Na comunidade Frei Damião, em Palhoça, uma das mais empobrecidas de do Estado, vivem cerca de 8 mil pessoas. Muitos moradores estão à margem de serviços como saneamento básico, água tratada luz elétrica. As famílias dependem da informalidade e é grande o número de pessoas que vivem da coleta de material reciclável. Entre as instituições que desenvolvem atividades sociais está o Projeto Docs.

A voluntária Cintia Amaral explica que a situação é de apuros, pois sem a merenda escolar muitas crianças ficam sem ter o que comer. As entidades que atuam no bairro se uniram e organizaram a distribuição das doações seguindo as características das famílias. O projeto abriu uma vaquinha on-line para atender emergencialmente as famílias mapeadas, as quais recebem um crédito para retirarem alimentos em mercados minimercados do bairro.

– A gente tem sido atendido pelas pessoas e estamos atuando de uma forma mais pontual. Mas sabemos que tem questões que dependem de uma estrutura melhor, como a questão sanitária – diz Cintia.

Projeto “Mães da Favela” vai auxiliar 20 mil mulheres chefes de família

doação
(Foto: Recicla Floripa, Divulgação)

Uma pesquisa da Data Favela em parceria com o Instituto Locomotiva e Central Única das Favelas (Cufa) mostra serem 13,2 milhões os brasileiros moradores em favelas. Em Santa Catarina não existem números oficiais, informa a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social. Uma das referências é o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único), instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda para que se conheça a realidade dessa população.

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A pesquisa foi feita em 260 favelas de todo o país. As favelas brasileiras abrigam 5,2 milhões de mães, com média de 2,7 filhos cada uma. De cada grupo de 10, nove alteraram as rotinas. Muitas deixaram de trabalhar para ficar em casa com os filhos e ou cuidar dos pais idosos. Sete em cada 10 mães revelaram que sem renda não poderão manter as famílias. O restante delas tem uma reserva para se manter até no máximo dois meses.

doação
(Foto: Recicla Floripa, Divulgação)

Uma parcela de 85% dessas mulheres disse que o pagamento das contas será prejudicado por ter que ficar em casa sem renda e 58% afirmou que o cuidado com a família será prejudicado pelo mesmo motivo. Para ajudar a reduzir o impacto da pandemia, foi lançado o projeto Mães da Favela, que contemplará 20 mil mães no Brasil.

Em Santa Catarina a ajuda de R$ 120, em duas vezes, chega a 500 mulheres cadastradas nas comunidades. Em Florianópolis serão 150 mães chefes de família.

– É uma bolsa que vai ajudar as famílias num momento difícil onde está todo mundo dentro de casa sem poder trabalhar e consumindo – conta Alex Gabriel Rodrigues, coordenador da Cufa em Criciúma, cidade que tem direito ao cadastro de 200 mães chefes de família.

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Quilombolas fazem máscaras

O coronavírus também agravou a situação das 28 famílias quilombolas da localidade do Porto, no bairro do Rio Vermelho, em Florianópolis. Em meados de fevereiro eles deixaram as casas e ocuparam o camping dentro do Parque Estadual do Rio Vermelho, fechado desde 2017. Cerca de 50 pessoas, incluindo idosos e crianças fazem parte da ocupação, que decorre de uma disputa na Justiça envolvendo o governo do Estado.

Os quilombolas são autônomos – faxineiras, costureiras, serventes de obras – e estão sem renda. A comunidade está colhendo verduras e legumes já plantados por eles, e vendendo máscaras produzidas por eles próprios.

– A estrutura aqui é melhor, pois nossas casas são grudadas, chove dentro e sem condições de isolar alguém, caso contaminado pelo coronavírus – diz Helena Vidal, a presidente da Associação dos Remanescentes dos Quilombolas Vidal Martins.

Morador na Vargem Grande e ex-presidente da Associação de Moradores do Rio Vermelho, Cesar Ismar diz que a situação dos quilombolas é a radiografia do que ocorre no bairro, devido às dificuldades de habitação. Ele faz parte da Rede Colaborativa do Rio Vermelho e com outras pessoas tem ajudado a levar alimentos para moradores.

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A rede criou um grupo no WhatsApp e possui dois pontos fixos de coleta – mercado Super Norte e Farmácia do Rio Vermelho –, parceiros do projeto. Pelo aplicativo, os pedidos de ajuda são e as características das famílias – número de crianças, idosos, endereço – são centralizadas e ajudam na hora da entrega nas casas das pessoas.

Tabela: Catarinenses em Risco

População (Censo 2010): 6.248.436 habitantes

Famílias inseridas no Cadastro Único: 411.361

Famílias Programa Bolsa Família fevereiro/2020: 111.283

População beneficiada pelo PBF: 4,54%

Valor médio do benefício: R$ 176 por família

Valor transferido em fevereiro de 2020: R$ 19.586.197,00

Famílias com renda até 1/2 salário mínimo em SC: 263.484

Famílias com renda até 1/2 salário mínimo com o cadastro atualizado: 219.982

Fonte: Ministério da Cidadania – Secretaria Nacional de Renda e Cidadania dados relativos a 12/03/2020