*Por Catherine Porter

Aquela terça foi o dia para o qual Bonnie Henry se preparara a vida inteira: durante a noite, 83 pessoas tinham sido diagnosticadas com Covid-19 e outras três tinham morrido. A pandemia chegara oficialmente à Colúmbia Britânica.

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Dentro da sala de comunicações da sede do governo, a secretária da Saúde da província mais ocidental do Canadá declarou, com a calma quase sobrenatural que lhe é peculiar, a emergência de saúde pública. De acordo com suas ordens, escolas e bares fecharam, e foram instauradas medidas de distanciamento social.

“Parecia surreal. A sensação era a de que alguém estava pisando no meu peito”, confessa.

Naquele dia, 17 de março, Henry concluiu sua apresentação com uma frase que se tornaria sua marca registrada e um mantra para muitos canadenses com dificuldade de lidar com o confinamento – e que desde então aparece pendurada nas janelas, pintada nas ruas, impressa em camisetas, bordada em sapatos, incluída em músicas e gravada em pulseiras.

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“Esta é a oportunidade de sermos gentis, calmos e ficarmos protegidos”, disse ela lentamente e no tom de voz baixo que muitos consideram reconfortante.

Nos meses seguintes, Henry provaria ser uma das autoridades de saúde pública mais eficientes do mundo, com lições valiosas para os países com dificuldades em sair do lockdown. E, enquanto em Ontário e Quebec, as duas províncias mais densamente povoadas do país, continuam surgindo centenas de casos diariamente, a Colúmbia Britânica já reabriu as escolas, os restaurantes e até os salões de beleza.

“Para todos os efeitos, a Colúmbia Britânica deveria ter sido arrasada, pois, além de estar situada no litoral, ainda é vizinha do estado de Washington e tem uma população imensa que transita entre o Canadá e a China, onde o surto se originou. Apesar de tudo isso, o governo partiu para ações decisivas, não hesitou um minuto sequer e se comunicou com clareza e transparência. O público ouviu e atendeu”, explica Colin Furness, epidemiologista de controle de infecções de Toronto.

Ex-médica da Marinha, Henry é reconhecida não só pela inteligência e força, mas também pelos traços de liderança tradicionalmente femininos, como humildade, cooperação, empatia e emoção. Naquela que talvez tenha sido sua coletiva mais marcante, chegou a chorar depois de anunciar a confirmação do vírus em casas de repouso.

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“Aceitaremos a vulnerabilidade de nossos líderes como uma das formas pelas quais o coronavírus mudou a sociedade” declararam os jornais “The Globe” e “The Mail”.

Em uma de suas raras folgas, na sala de estar de sua casa, em Victoria, usando uma das muitas camisetas estampadas com sua imagem enviadas pelos apoiadores, Henry disse, na entrevista que nos concedeu por vídeo, que se sente ao mesmo tempo sensibilizada e apavorada com a fama repentina. Introvertida, está acostumada a trabalhar em uma obscuridade relativa – tanto que usa a coleção de sapatos pitorescos do designer canadense John Fluevog, que também já ficou famosa, para “ganhar um pouco de confiança”.

Mas admite que a carreira de 30 anos – que inclui cargos como o de oficial médica da Marinha, cuidando de mil homens no mar; o de médica familiar em uma clínica californiana; o de epidemiologista organizando quarentenas para famílias expostas ao ebola em Uganda; e o de líder operacional da ação de Toronto contra o surto da síndrome respiratória aguda grave (Sars, na sigla em inglês), em 2003 – a preparou bem para o momento atual.

“Tem muito a ver com o reconhecimento de que estamos todos na mesma tempestade, pois ela está afetando o mundo. Só que não estamos no mesmo barco, por isso não podemos fazer suposições em relação às outras pessoas. O que posso fazer é lhe dar todas as informações que sabemos para que você se esforce para não afundar”, resume a médica de 54 anos.

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médica
(Foto: Jackie Dives / The New York Times)

Henry nasceu em um núcleo militar, segunda de quatro filhas de uma família de classe média. Seu pai era major do Exército, cujo cargo o forçava a se mudar a cada dois anos para cidades diferentes, como St. John’s, na Terra Nova, no leste, Calgary, no oeste, e até para os Países Baixos.

“Muito cedo, todas nós desenvolvemos o hábito de criar um mundo próprio e ser autossuficientes”, revela Lynn, a irmã mais velha. Quando teve apendicite, aos oito anos, a irmã foi visitá-la; ao chegar ao hospital, olhou à sua volta e declarou: “É isto aqui que quero fazer.” E se tornou a primeira médica da família.

Depois de concluir o ensino médio, Henry entrou para a Reserva Naval, atraída pela camaradagem, pelas técnicas de navegação e comunicação e pelo fascínio com o mar. Alistou-se quando estava no terceiro ano de medicina e se formou para se tornar oficial médica em Esquimalt, na Colúmbia Britânica, perto de onde mora hoje.

“Fico pensando naquela época; grande parte do trabalho que fiz com um grupo de presos foi de prevenção. Viviam me provocando, dizendo que eu só mandava que usassem protetor solar e camisinha”, descreve ela, que ficou quase dez anos na Marinha, onde conheceu o marido. (Eles se separaram há cinco anos, depois de vinte juntos, e nunca tiveram filhos.)

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Um dia, quando trabalhava em San Diego, na Califórnia, um homem armado invadiu a clínica, exigindo falar com alguém. Henry se adiantou. “Eu disse que era alguém e sugeri que conversássemos. Ele caiu no choro. Estava com dor e desesperado.”

Na verdade, ele se recuperava de uma cirurgia cardíaca de peito aberto e não sabia como pagar as despesas médicas.

Foi enquanto trabalhava para a Organização Mundial de Saúde, monitorando os surtos de ebola em Uganda, que Henry desenvolveu seu método de como lidar com as emergências de saúde pública – e chegou à conclusão de que para a realização de uma quarentena eficiente era preciso boa comunicação e apoio, como comida e acompanhamento médico, e não medidas punitivas.

“Se você disser às pessoas com clareza o que elas precisam fazer e por quê, e lhes der meios para isso, sem dúvida a maioria vai colaborar”, garante ela.

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Henry era secretária adjunta da Saúde em Toronto, em 2003, quando chegou um paciente ao hospital com uma doença que parecia tuberculose; sua função era descobrir o que era e definir um plano de contenção. No fim das contas, a Sars matou 44 pessoas na cidade.

Henry conta do telefonema que recebeu uma noite, com a notícia de que a mulher de um paciente de Sars estava com febre e precisava ser hospitalizada. O casal tinha dois filhos.

“Não achamos ninguém que pudesse ficar com as crianças. Liguei para várias agências de serviço de apoio infantil, e todas disseram a mesma coisa: ‘Não podemos fazer nada.’ No fim das contas, tiveram de ficar em um hospital pediátrico por um mês”, e diz, chorando, que as pessoas morriam de medo da doença.

Todos os membros da família sobreviveram, mas a lembrança do estigma que enfrentaram marcou Henry. E é por isso que, mesmo quando instada a usar a força policial para garantir o distanciamento social em parques e protestos – pois tem esse direito –, ela se recusou terminantemente.

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“É a única maneira de a comunidade superar a pandemia sem traumas”, justifica.

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