Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco, o professor de Psicologia Benedito Medrado estuda a paternidade há 20 anos. A partir do Instituto Papai, ele acompanha o contexto da figura paterna no Brasil. Considera “migalha” a licença-paternidade de 20 dias que, no Estado catarinense, é realidade em menos de um quarto das grandes empresas. Confira a entrevista completa:

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Você diz que a licença-paternidade está ligada à igualdade de gênero. Como se dá essa relação?

A licença-paternidade é uma questão chave no debate sobre a paternidade. No Brasil, estamos desde a década de 80 falando sobre a necessidade da participação masculina nas práticas de cuidado. O movimento feminista explicitou um problema de duas ordens: pública, que se reflete nas ausências das mulheres nos postos de trabalho e, consequentemente, na dificuldade de ascender ao poder nesses espaços. E a outra dimensão é a privada, que inclui o espaço do cuidado, das relações de afeto e sensibilidade. O lugar dos homens nessa dimensão do privado. Ainda que sem equidade, as mulheres conseguiram alcançar postos de trabalho e representatividade, mas isso não significa que os homens passaram a exercer práticas de cuidado e tarefas domésticas. Esse descompasso se reflete na tripla jornada de trabalho feminina. E reforça a divisão sexual do trabalho, que coloca as mulheres como sempre “do lar” e os homens como sempre “do mundo”.

Há homens na contramão desse cenário?

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O Instituto Papai começou a denunciar em 1997 que existem homens que desejam cuidar, que gostariam de participar e têm negociado com suas companheiras. E até homens que também não têm companheiras, que se tornaram viúvos, ou homens casais que formam um casal. A licença-paternidade atravessa todas essas discussões. Ao ser discutida, tem que ser levada em consideração a divisão sexual do trabalho (no público e no doméstico). A licença-paternidade é construída pressupondo que a licença-maternidade está em vigor em um modelo de família nuclear, como se o pai virasse um mero colaborador no pós-parto. E isso é um problema sério. Hoje os arranjos familiares são diversos e existem homens a fim. Mas é complicado quando a própria lei diz que lugar de homem é na rua e lugar de mulher é em casa.

Ainda há preconceito em torno da licença-paternidade?

Há um lugar comum que se criou que diz que o homem vai aproveitar a licença-paternidade para beber e deixar mulher. Nós precisamos superar esse imaginário, porque ele reproduz esteriótipos e não abre os olhos para um possibilidade de mudança. É claro que esses homens existem, porque nós vivemos numa sociedade machista e patriarcal. Mas isso não deveria justificar a legislação, que usa um mau exemplo como referência e impede boas práticas do ponto de vista ético. Nesse sentido, há uma institucionalização da ausência paterna. Porque mexe no capital. Mas não é só isso. O que está em jogo é uma ressignificação simbólica do trabalho e de gênero voltada ao cuidado. A equidade gênero também passa pelo trabalho doméstico.

Vinte dias são suficientes na sua opinião?

Nós conseguimos, em alguns espaços, ampliar 15 dias, com a Empresa Cidadã, mas 20 dias é muito pouco tempo. Hoje em dia, as crianças estão vindo com muitos problemas por alimentação e estilo de vida, por exemplo. Há uma dificuldade de a criança chegar nesse mundo. Também tem os prematuros, que exigem cuidados especiais. Ao mesmo tempo, a mulher também precisa de cuidado e atenção. Então é impossível administrar tudo isso em 20 dias. Com a adoção é a mesma coisa, porque é um novo nascimento, que pressupõe uma reorganização de vida. Pai e mão precisam se despir de todos os compromissos para garantir esse cuidado. A nossa ideia é que houvesse uma equiparação plena e absoluta. Na Suécia, a licença é estendida ao longo dos 7 primeiros anos de vida e pode ser negociado e dividido com a outra pessoa. Isso ajuda a entender o cuidado do ponto de vista de gênero. A Constituição especificou que seriam cinco dias de licença-maternidade, mas também disse que essa era uma condição provisória. Que seria necessário discutir e se chegar a um tempo mais adequado. Mas no contexto político atual, isso não está acontecendo. Hoje, quem consegue se dedicar mais ao cuidado de recém-nascidos e de casa são homens autônomos ou que estão fora do mercado de trabalho formal.

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Há perspectiva de mudança?

Nos últimos 20 anos, houve uma mudança no padrão das relações de cuidado. A gente vinha observando cada vez mais homens participando da divisão sexual do trabalho, especialmente do trabalho doméstico. E também mudanças da ordem jurídica, com homens conseguindo licença-maternidade, por exemplo, a partir de jurisprudência, porque não existe lei ainda. São exemplos homens que conseguiram porque a mulher teve uma complicação no parto e acabou morrendo, mas mesmo assim esses homens tiveram de provar que não teve nenhuma outra mulher que poderia cuidar da criança. O que é um absurdo. De qualquer forma, isso sinaliza que a justiça vem se tornando mais visível. Também existem vários projetos de lei em curso há algum tempo. O problema é que todos eles, depois da Empresa Cidadã, tiveram o debate amornado. Considero o programa Empresa Cidadã um avanço ao que tínhamos antes, mas ainda é migalha. Além disso, a maioria das empresas não adere por desconhecimento e por não enxergar como prioridade.

Como viver a paternidade plenamente nas condições atuais?

Essa noção de plenitude é muito relativa. Não tem como garantir a plenitude da paternidade, porque não há um modelo ideal de paternidade. O que temos são tentativas de resistir às intervenções, aos obstáculos e às tensões que impedem quaisquer realizações. A licença-paternidade não é o adequado porque diferencia o homem da mulher, coloca as mulheres como quase exclusivas na operação do cuidado, e coloca os homens como secundários, colaboradores e não participantes. Isso é um obstáculo para um exercício da paternidade. Discutimos isso em vez de paternidade ideal. Porque acaba que as instituições escola, igreja e trabalho impedem o exercício da paternidade.

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