POR SÉRGIO MEDEIROS *

As aventuras do herói Jurupari estão registradas na extensa A Lenda de Jurupari, uma das obras-primas das letras ameríndias, que deverá ser republicada no próximo ano pela editora Iluminuras de São Paulo. Devemos a sua coleta e publicação a um índio mestiço, Maximiano José Roberto, grande conhecedor da mitologia amazônica, e a um conde italiano, Ermano Stradelli, estudioso da língua nheengatu, o “tupi moderno” que se tornara a língua geral na região dos rios Uaupés, Içana e Negro.

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A lenda, publicada no final do século 19, merece certamente o título de grande texto da literatura universal. O meu contato pessoal com a lenda é antigo, pois, em 2002, tive o privilégio de republicá-la no livro Makunaíma e Jurupari, organizado por mim e publicado pela Perspectiva. Recentemente, recriei alguns elementos da lenda no meu livro infantojuvenil O Desencontro dos Canibais, lançado em 2013. Destaquei nesse novo trabalho o fato de que Jurupari é chamado de “o filho da fruta”, pois foi concebido durante o inusitado encontro amoroso entre uma virgem e um vegetal. Sabemos que o “sex-appeal” vegetal, ou o intercurso sexual entre humanos e vegetais, é um tema muito difundido na mitologia indígena do nosso continente.

No primeiro fragmento da versão original de A lenda de Jurupari, algumas mulheres abandonam a própria terra quando fi cam sem os respectivos maridos. Depois, elas encontram um tuxaua (chefe) de outra tribo, travando com ele um interessante diálogo, que reproduzo a seguir:

“E lá bem embaixo, elas encontraram uma terra cujos habitantes eram como elas, só que não tinham leis, e lá fi caram todas, dizendo que tinham abandonado a própria terra porque a mãe da água tinha chamado para o fundo do rio todos os homens da tribo. E então o tuxaua [chefe] perguntou a elas aonde queriam ir.

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“Queremos ficar aqui.”

“E se a mãe da água vier atrás de vocês?”

“Ela será rechaçada pelas flechas de seus guerreiros.”

“Assim seja. Mas onde encontrarei homens para todas vocês?”

“Não queremos homens; prometemos não mais nos unirmos aos homens.”

“E se eu desse um marido a cada uma de vocês, teriam coragem de recusá-lo?”

“Para obedecê-lo, aceitaríamos, mas não para ter filhos e sim para tratá-lo como irmão.”

“Pois muito bem. Hoje mesmo cada uma de vocês terá um irmão para distraíla e contar histórias.”

E logo que a noite chegou o tuxaua, um irmão para cada mulher; e quando os recém-chegados disseram a elas que tinham sido enviados para contar histórias, elas não os escutaram e se atiraram em seus braços e os receberam como maridos.”

Essas mulheres, consideradas impacientes por Jurupari, traíram duplamente a palavra empenhada: inicialmente, não esperaram a volta dos maridos e, tempos depois, já vivendo no exílio, não agiram como haviam prometido ao tuxaua, e, tomadas pelo desejo sexual, lançaram-se nos braços dos parceiros, calando as narrativas que estes deveriam contar-lhes. A comicidade dessa falta de controle é sublinhada pelos autores do texto (a lenda não é decididamente sisuda), que trata de dois temas importantes para Jurupari _ o sexo e a narrativa, o ato e a palavra. Disse que Jurupari chamou as mulheres de impacientes. Quando o fez? Ele o fez já perto do fi nal da lenda, ao narrar a seus companheiros, que nada sabiam do destino fi nal das personagens em questão, “a triste história das nossas mulheres”.

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Do fundo cômico do fragmento reproduzido, extrai Jurupari uma triste constatação: não existe uma mulher perfeita. Nesse momento, Jurupari revela quem é: um herói legislador que veio ao mundo para impor nova lei, regulamentando as relações entre os sexos. A sua própria mãe, como sabemos, relacionara-se com uma fruta por falta de parceiros, numa época em que a vida sexual era desregrada ou anormal.

Vejamos em que consistiria essa perfeição da mulher e a sua relação com o sexo e a narrativa. Diz Jurupari, o representante do sol na terra (ele é um herói solar e não demoníaco, como já foi interpretado por missionários), ao seu discípulo Carida:

“O Sol, desde que a Terra nasceu, procurou uma mulher perfeita, para chamála perto de si, mas como não a encontrou até hoje, confi ou-me parte de seu poder, para ver se neste mundo poderá existir uma mulher perfeita.”

“E qual é a perfeição que o Sol deseja?” “Que tenha paciência e que saiba guardar um segredo e que não seja curiosa.” “Nenhuma mulher que existe hoje sobre a Terra tem essas qualidades juntas: se uma é paciente, não sabe guardar um segredo; se sabe guardar um segredo, não tem paciência; e todas são curiosas, querem saber tudo e experimentar tudo. “E até hoje ainda não apareceu a mulher que o Sol deseja possuir. “Quando a noite de hoje estiver no meio teremos que nos separar; eu irei para o oriente e você, seguindo o caminho do Sol, irá para o poente. “Caso um dia o Sol, eu e você nos encontremos no mesmo lugar, será porque sobre a Terra terá aparecido a primeira mulher perfeita”.

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Esse diálogo sobre a perfeição feminina encerra a lenda (pois aparece nos seus parágrafos finais), revelando o cerne da nova lei (a lei do sol) que Jurupari deseja instituir na floresta. Naturalmente, a primeira indagação que surge, ao tratarmos desse tema, é sobre a própria vida sexual de Jurupari, um herói transformador que atua de modo casto na maior parte da lenda, sobressaindo-se por aquilo que narra e não por qualquer conquista de cunho amoroso.

* É poeta e tradutor. Publicou, entre outros, os livros O Choro da Aranha (7 Letras, 2013) e O Desencontro dos Canibais (Iluminuras, 2013).