*Por Patrick Kingsley

Posto de travessia da fronteira de Rozvadov – “Por favor, saia do carro”, pediu o policial na fronteira entre a República Tcheca e a Alemanha.

Continua depois da publicidade

Ele e o colega inspecionaram o veículo, murmurando um com o outro sobre a possibilidade da existência de um compartimento secreto. Quando acabaram, onze minutos depois, tinham espalhado todo o conteúdo da minha mala, da mochila e da sacola de remédios nos bancos do carona e traseiro.

“Está liberado. Pode entrar na Alemanha”, anunciaram.

O episódio foi um tanto inconveniente, claro, mas não deixa de ser ilustrativo – pois resume como a vida na Europa se tornou bagunçada e aleatória desde o início da pandemia do coronavírus.

Continua depois da publicidade

Se fosse há três meses, eu poderia ter saído da República Tcheca direto para a Alemanha sem nem me dar muita conta de onde ficava a fronteira, graças ao acordo que permite liberdade de ir e vir na maioria dos países da União Europeia.

Agora, há um posto de verificação do lado tcheco e outro dentro da Alemanha – e, a princípio, nem mesmo uma carta do “The New York Times”, uma nota diplomática da embaixada britânica (porque sou cidadão), o cartão de identificação da imprensa alemã e um certificado confirmando que eu não tinha Covid-19 conseguiram convencer os alemães de que eu tinha razões legítimas para estar me aventurando por ali.

repórter
(Foto: Laetitia Vancon / The New York Times)

É exatamente esse tipo de encontro esquisito que estou tentando registrar ao viajar de carro por uma Europa que está no processo de abertura pós-confinamento.

Na companhia da fotojornalista do “The New York Yimes” Laetitia Vancon, estou em meio ao que deve acabar sendo uma viagem de pouco menos de seis mil quilômetros por seis países em diferentes estágios de recuperação, depois da hibernação forçada causada pelo vírus.

Continua depois da publicidade

Até agora, tem sido uma experiência absurdamente privilegiada, num momento em que muita gente continua confinada ao próprio bairro. E também previsivelmente estranha, uma viagem na qual os momentos surreais parecem absolutamente normais e a normalidade, surreal.

Em Berlim, passamos um dia inteiro em um restaurante recém-reaberto, fato que não valeria nem um comentário há três meses – e, no entanto, agora tem ares de façanha notável.

É meio desconcertante testemunhar países diversos – e até regiões diferentes dentro de uma mesma nação – se abrindo em ritmos alternativos, com prioridades idem.

Nesse dia em Berlim, por exemplo, os clientes dos restaurantes já podiam frequentar a parte interna, enquanto em Munique só podiam comer do lado de fora. Na Suíça, a grande maioria do público não parecia usar máscara na rua, mas um dia depois, na República Tcheca, ainda era obrigatório seu uso em qualquer lugar fora de casa.

Continua depois da publicidade

repórter
(Foto: Laetitia Vancon / The New York Times)

Aí, no dia seguinte, saímos ao sol para voltar a ver o rosto das pessoas, uma vez que a lei mudara da noite para o dia.

O que significa que a logística das viagens se mostrou infinitamente mais complicada que o normal.

A maioria dos hotéis continua fechada, e os que estão abertos se veem assustadoramente vazios. Em Praga, paguei as diárias adiantado – para, ao chegar, descobrir que o hotel tinha fechado as portas fazia várias semanas. Com as luzes todas apagadas, só havia um aviso na porta pedindo que o público ligasse para outro hotel da mesma cadeia.

Quando viajei pela Europa a trabalho, no ano passado, várias vezes tive de pegar um voo para o exterior com apenas algumas horas de antecedência; a atual, entretanto, levou semanas para ser organizada e, por razões de segurança, decidimos viajar de carro em vez de avião, pois isso diminuiria nossa exposição aos espaços públicos e a outras pessoas.

A travessia também exigiu contato com diversos órgãos públicos para saber se permitiriam a entrada de jornalistas no território e, em caso afirmativo, em que condições isso se daria.

Continua depois da publicidade

Da polícia fronteiriça polonesa, recebi um “não” curto e grosso; já o Ministério do Interior belga disse que só precisaríamos apresentar o cartão da imprensa e um símbolo azul que podia ser baixado do site oficial, impresso e colado no para-brisa.

repórter
(Foto: Laetitia Vancon / The New York Times)

Os dinamarqueses quiseram uma carta dos meus editores; os suíços, só saber nossas datas de viagem para providenciar um “laissez-passer” na fronteira. O governo da Alemanha, onde moro, disse que eu só poderia sair do país durante 48 horas consecutivas de cada vez, do contrário teria de cumprir duas semanas de quarentena na volta.

Às vezes, as autoridades nem sabiam muito bem o que nos dizer.

A princípio, os tchecos quiseram uma carta do “The New York Times” e uma carta diplomática de nossas respectivas embaixadas em Praga, mas, faltando poucos dias para a viagem, mudaram as regras.

Para entrar, agora também precisaríamos ter o convite de uma empresa nacional (um cinema drive-in nos arranjou um) – e, mais complicado que isso, um exame de Covid-19 realizado até quatro dias antes da chegada.

Continua depois da publicidade

A dificuldade residia em que os resultados levavam três dias úteis para ficar prontos, e só tínhamos dois. Quando eles chegaram, já estávamos na Suíça, forçando assim a clínica a enviá-los por e-mail, apesar da leve insinuação de má vontade.

No fim das contas, a polícia tcheca mal olhou para eles antes de nos dar sinal verde para entrar no país. Para minha surpresa, foram os alemães na fronteira tcheca que se mostraram mais desconfiados.

repórter
(Foto: Laetitia Vancon / The New York Times)

Indo e voltando da Suíça, os guardas alemães fronteiriços nem sequer me tinham feito parar, mas agora seus colegas, várias centenas de quilômetros a leste, não conseguiam entender por que eu estava viajando daquele jeito justo naquele momento. Ficaram questionando alguns carimbos no meu passaporte, mas o que me incomodou de verdade foi o fato de mencionarem uma versão antiga do documento, que eu perdera anos antes em Berlim, mas que parecia ainda estar registrado na base de dados deles.

“Tem alguma coisa no carro, tipo armas, facas… ou drogas? Maconha?”, um dos oficiais perguntou.

Continua depois da publicidade

Passei grande parte da minha carreira investigando contrabandistas – mas, vejam vocês, neste mundo de cabeça para baixo, o policial parecia achar que eu levava jeito de ser um.

The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.