– A opção que a gente tem é a de seguir o coração ou se esconder. Esse dilema acompanhou a professora de design Maria Alice Corrêa Raabe até 28 de janeiro de 2013. Foi no dia do seu aniversário de 24 anos que ela tomou a decisão que mudou para sempre a sua vida: assumir para todos a identidade com a qual se identificava e que não correspondia ao corpo com o qual nasceu, o de um menino. De lá para cá, já enfrentou preconceitos, o próprio espelho e a angústia de ter que reafirmar dia após dia quem sempre foi de verdade, ela mesma. Hoje, quatro anos depois, a luta é outra. Maria Alice busca na Justiça o direito de trocar nome e gênero nos documentos de registro.

Continua depois da publicidade

Leia as últimas notícias

– Por muito tempo a minha opção foi de querer esconder para evitar atritos, mas a partir do momento em que eu cheguei e disse: `não, vamos encarar isso¿, aí realmente eu me olhava no espelho e não me identificava. A cada dia eu vou me identificando um pouco mais e ainda hoje tem uma coisa ou outra que eu olho e digo `isso ainda não está certo¿, mas já olho e vejo eu. Isso faz muita diferença – conta.

Maria Alice nasceu em Mafra, no Norte catarinense, mas vive desde 2003 em Joinville, onde fez uma solicitação na Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPE-SC) para que eles a ajudassem a requerer judicialmente a mudança nos documentos. A espera já dura quatro anos, mas, segundo ela, está perto do fim. Em novembro do ano passado ela recebeu uma decisão judicial favorável para ter reconhecidos a identidade e o gênero com os quais se identifica. Agora será preciso fazer a alteração em cartório.

O caminho é o mesmo trilhado por dezenas de homens ou mulheres transgêneros nos últimos anos, em Santa Catarina. De junho de 2013 até maio de 2017, a Justiça catarinense julgou procedente dez pedidos de retificação de sexo em registro civil em Joinville.

Continua depois da publicidade

A cidade lidera o número de solicitações de mudança de identidade e gênero no Estado, onde ocorreram 48 pedidos do tipo nos últimos quatro anos. Todos estes foram julgados procedentes, com ou sem cirurgia de redesignação sexual, segundo dados da Divisão Judiciária da Corregedoria-geral da Justiça de Santa Catarina.Cinco dos pedidos joinvilenses, todos de pessoas que ainda não passaram pela cirurgia de mudança de sexo, foram feitos com auxílio da Defensoria Pública de Joinville. Quatro deles já foram aceitos e encerrados e o quinto continua a tramitar na 3ª Vara da Família, conforme o Defensor Público-Geral do Estado, Ralf Zimmer Junior.

Conquista mesmo sem cirurgia

Maria Alice, por exemplo, é um desses casos. Ela ainda não passou por nenhum processo cirúrgico, mas apresentou documentos e testemunhas para comprovar identidade e gênero femininos. Sem uma Lei específica sobre o assunto, cabe ao judiciário decidir caso a caso o direito de alteração documental de pessoas transgêneras e não existe ainda juizado específico para o encaminhamento do pedido.

– Com 14 anos eu já entendia o que que eu tinha que fazer e, dez anos depois, me abri para a família e para as outras pessoas. Esse foi o segundo marco da minha vida, foi quando realmente surgiu a Alice para o mundo. E se hoje eu pretendo fazer a cirurgia de redesignação é para ficar de acordo com como eu me vejo e não por enxergar isso como uma obrigação. Você pode se afirmar do seu jeito, não é uma coisa como era antes que era para provar – explica a professora.

Isso se torna viável porque a legislação do País possibilita alteração, retificação ou acréscimo informações nos documentos de registro por qualquer cidadão brasileiro, desde que com petição fundamentada por provas documentais, periciais e testemunhais. Essa previsão é encarada como uma oportunidade a mais às pessoas que não se identificam com o sexo biológico a procurarem a Justiça em busca de do reconhecimento do nome e o gênero com os quais se reconhecem.

Continua depois da publicidade

Em Joinville, sete dos julgamentos favoráveis à retificação de sexo foram conquistados na 2ª Vara da Fazenda Pública e três na 2ª Vara da Família, onde o processo de Alice foi instaurado. Atualmente, a Justiça de Santa Catarina tem em andamento outros 33 pedidos de retificação de sexo, suprimento ou restauração do Registro Civil. A região detém 10 deles, sendo oito em Joinville e, os outros dois, em Canoinhas e Araquari. Na capital do Estado, Florianópolis, outros quatro casos são analisados.

DECISÕES MAIS RÁPIDAS

Assim como fez Maria Alice, a manicure Estella Morais Martim, de 24 anos, também procurou um defensor público para auxiliá-la no processo de alteração de identidade e gênero. Quando procurada, a defensoria reúne a documentação necessária e entra com uma ação de retificação de registro civil junto ao judiciário. Estella conseguiu efetuar a mudança na segunda tentativa. A primeira, feita em São José do Rio Preto (SP), em 2012, não teve resultado. A segunda, iniciada em Joinville no ano passado, onde mora desde 2011, foi julgada procedente.

– Eu queria muito mudar o meu nome porque me sentia mal e não arrumava emprego nenhum com aquele nome [que constava no Registro Civil]. A pessoa olhava o RG antigo e eu estava com o cabelo curto na foto, como um homem, e aí as pessoas quando olhavam pensavam `será que é ela mesmo? Será que não é?¿ Busquei ser reconhecida no papel e ter como apresentar os meus documentos. Hoje eu me aceito assim do jeito que eu sou, me sinto bem assim e se a pessoa quer mudar ela tem que mudar tudo e ter essa coragem que eu tive um dia. Eu sempre falei `eu vou conseguir¿, e consegui – desabafa.

A sentença favorável a Estella foi emitida pela 2ª Vara da Fazenda Pública de Joinville no dia 20 de outubro de 2016, três meses depois do início da tramitação. Para o Defensor Público, Djoni Benedete, as decisões da Justiça relacionadas ao tema estão mais rápidas. A agilidade, segundo sua avaliação, é decorrente de que apesar de a lei não trazer expressamente a possibilidade de alteração nessa hipótese, os vereditos estão se pautando nos direitos constitucionais dos cidadãos, da dignidade da pessoa e o direito à não discriminação e promoção do bem estar do indivíduo.

Continua depois da publicidade

– A defensoria fica muito feliz porque aqui em Santa Catarina os pedidos, em geral, têm sido aceitos, devidamente justificados e os juízes têm deferido a alteração tanto de nome quanto de sexo, o que representa um grande avanço. Isso significa justamente um reconhecimento do direito dessas pessoas em detrimento de qualquer outro direito que não esteja expressamente assegurado e que a gente consegue depreender desses direitos constitucionais que a pessoa tem – destaca.

O acolhimento do pedido da jovem foi feito pelo Juiz Roberto Lepper, que ordenou a retificação do assento de nascimento do requerente para que passe a se chamar Estella Morais Martim, alterando-se, ainda, o sexo para ¿feminino¿¿. Para a decisão, Lepper considerou o desejo de Estella em ser reconhecida como mulher, o tratamento hormonal iniciado por ela em 2012, além dos relatos de constrangimentos dela pela notória divergência de seus documentos com a realidade.

– Eu não me aceitava e aos 14, 15 anos, já não via a hora do meu cabelo crescer, por exemplo. Na escola me chamavam pelo nome antigo e quando tinha chamada eu lembro que eu falava `meu nome não é esse, meu nome é Estella¿, aí eles foram se acostumando e me aceitaram bem desde pequena. Em casa também tive apoio e minha mãe sabia que eu seria como sou hoje. Me sinto muito bem, é tudo do jeito que eu queria, só falta a cirurgia [de redesignação], que também vou fazer.

Identidade nova, vida nova

Já com o documento que determina a mudança de nome e gênero em mãos, Estella poderá emitir uma nova certidão em cartório e esquecer de vez a identidade antiga, que assim como Alice, prefere não mencionar. Ela já iniciou os trâmites para emitir o registro no cartório onde nasceu. Conforme o defensor Djoni Benedete depois de pronto, o documento vai possibilitar a ela a emissão de RG e CPF novos, além de tirar passaporte, título de eleitor, carteira de habilitação e quaisquer outros documentos sem nenhuma menção ao nome antigo.

Continua depois da publicidade

– É uma nova vida, agora sim de acordo com o que ela realmente deseja ser – pontua, ele.

Esse também é o desejo de Maria Alice. Ela está certa de que `deste ano não passa¿ o acesso ao novo registro. A professora acredita que quando a espera terminar, não será mais preciso reafirmar a ninguém sobre quem ela é.

– Meu maior desafio hoje é poder ser eu mesma sem precisar provar o tempo todo. Às vezes, por um detalhe bobo, como não pintar a unha, em que qualquer mulher pode ficar dias sem pintar, fica aquela coisa de `você não está agindo como mulher, perdeu o título, você é um cara¿. Então, você tem que convencer as pessoas de que não precisa se provar o tempo todo.Em casa, por exemplo, essa provação já está sendo superada mesmo sem o registro oficial do novo nome.

O pai ainda se adapta às mudanças da filha. `Ele ainda não consegue chamar pelo meu nome, me chama de `CHI¿ [apelido sem gênero que Alice usava com os amigos], que para ele, está valendo¿, diz. Já sua mãe, além de apoiá-la na decisão, a elogia e ajuda com dicas de cabelo e maquiagem.

– A primeira vez que a minha mãe penteou o meu cabelo foi quando eu tinha 26 anos e ficou aquela sensação de que `nossa, agora eu estou pegando aquelas coisas que eu não tive quando era criança¿, então é algo que já está mudando bastante – comemora.

Continua depois da publicidade

Comissão da OAB discute o tema

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Joinville realizou no último dia 27 a primeira reunião aberta da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero. A iniciativa começou no ano passado e é uma das 26 comissões ativas do órgão na cidade. O encontro foi aberto a coletivos e à comunidade.De acordo com a advogada Júlia Melim Borges Eleutério, que preside a comissão, o objetivo principal da reunião foi conhecer as demandas sociais voltadas às questões relacionadas ao público LGBTI (Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais), além de esclarecer dúvidas relacionadas ao processo de alteração de identidade e gênero no registro civil.

A Comissão da Diversidade Sexual e Gênero foi criada, segundo a advogada, a pedido de um grupo de advogados da OAB Joinville que militam `social¿ e `profissionalmente¿ na área.

– Como as questões de gênero e diversidade sexual ainda estão em construção, sobretudo no que tange ao reconhecimento de direitos e ao combate às violações, verificou-se a necessidade em se criar a comissão – explica.

Entre as linhas de trabalho da Comissão estão o auxílio na qualificação dos profissionais do Direito (advogados/as, magistrados/as, membros do Ministério Público, defensores públicos, etc.) para que se compreenda melhor os novos desafios jurídicos na área da diversidade sexual e gênero, além da promoção e análise de debates, estudos, cursos, seminários e atividades que visem aprimorar e divulgar providências e conquistas pertinentes ao tema.O combate a intolerância e ao preconceito e a cobrança do Poder Público quanto ao desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao público LGBTI também estão na linha de frente da proposta.

Continua depois da publicidade

Entenda

Hospitais que realizam procedimentos ambulatoriais do processo transexualizador no Brasil.n Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG)

Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiron Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS de São Paulo

CRE Metropolitano, de Curitiban Hospital de Clínicas de Porto Alegre/Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Hospital Universitário Pedro Ernesto/Universidade Estadual do Rio de Janeiron Hospital de Clínicas/Faculdade de Medicina da USP

Continua depois da publicidade

Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Goiásn Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Pernambuco

Fonte: Ministério da Saúde

Como funciona

O processo de transexualização do SUS é considerado um procedimento complexo, uma vez que o processo cirúrgico é irreversível. O usuário cadastrado precisa passar por avaliação e acompanhamento ambulatorial com uma equipe multiprofissional, incluindo psicólogos. O acompanhamento psicológico tem duração mínima de dois anos para que o paciente tenha segurança e certeza de sua decisão.n Ainda de acordo com a pasta, para ambos os gêneros, a idade mínima para o início dos procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Já para os procedimentos cirúrgicos, a idade mínima é de 21 anos.