Filha de um ativista pelo movimento negro, Djamila Ribeiro cresceu em meio à manifestações e aprendeu a agir. Através da educação, furou o bloqueio que atinge muitos negros no Brasil e passou a militar contra as desigualdades raciais e sociais. Com o apoio de políticas públicas, chegou à universidade. Formou-se em filosofia e hoje é uma das principais vozes no país na luta por igualdade.

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Aos 39 anos, é filósofa, tem livros publicados e também escreve uma coluna no jornal Folha de S.Paulo. Por telefone, ela atendeu à reportagem para falar sobre racismo, desigualdades raciais, violência contra os negros, os manifestos que têm insurgido em diversos países e outros temas relacionados ao movimento negro.

Há alguns dias ela assumiu temporariamente o controle do perfil do comediante Paulo Gustavo no Instagram, que tem mais de 13,6 milhões de seguidores. Neste período, ela aproveita para abordar temas sobre as relações raciais no Brasil, e diz que a experiência tem se mostrado positiva.

Confira a entrevista completa:

O Brasil foi um dos últimos países a abolir oficialmente a escravidão, em 1888. Qual é o peso que esse fato histórico tem para o racismo estrutural que temos no nosso país?

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Ele acaba sendo base da construção da sociedade brasileira. Há mais de três éculos três séculos que as populações negras escravizadas do Brasil produziram a riqueza do país, sem ter direito à ela, sendo tratadas como mercadorias. É importante a gente frisar isso, o quanto que as pessoas negras já escravizadas acabou por criar essa mentalidade de condição social inferior, que permanece até hoje no Brasil. E os impactos desse período, a gente tem mais tempo no Brasil de escravidão do que sem escravidão, e isso impacta na construção das desigualdades no país, impacta na população negra e indígena, sobretudo.

Não tem como a gente esquecer, mais de 300 anos de opressão num país que tem pouco mais de 500, como que isso, tanto no período da escravidão, mas depois no pós-abolição, que não foram deixadas políticas de reparação para incluir a população negra.

Qual a explicação para que um país majoritariamente negro, como o Brasil, seja racista?

Por conta dessas construções do período escravocrata, que foram criadas uma série de teorias ideologizantes do século 19, na tentativa de inferiorização das pessoas negras. Inclusive para justificar a opressão da Europa nas Américas. Então, foram criadas teorias, em que (a gente) ouve bastante gente falar: “Ah, isso é coisa de gente ignorante”, como muitas vezes é pensado no senso comum. Muito pelo contrário. Foram as elites intelectuais que elaboraram essas teorias, que afirmavam, por exemplo, que os negros não tinham a mesma capacidade intelectual do que os brancos, que o cérebro (dos negros) era menor, que por conta disso podiam ser escravizados. 

Por mais que hoje essas teorias não sejam levadas a sério, elas permanecem na nossa memória social. Esses tipos de teoria, que animalizam as pessoas negras, que as colocam numa condição social inferior, criam essas existências marcadas por essas visões, elas permanecem até hoje no imaginário do brasileiro.

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E para além disso todas essas desigualdades, a escravidão, os dispositivos legais que foram construídos, como a Constituição do Império de 1824, sob o ponto de vista de quem era um cidadão livre, a lei de terras, de 1850, para ter direito à terra e comprar do Estado, quem podia comprar terra. Então, tantas teorias criaram esses imaginários sociais, mas também a escravidão e os dispositivos legais construíram essas desigualdades.

O racismo, quando a gente diz que ele é estrutural, é porque ele estrutura todas as relações sociais e foi organizado dessa maneira para permanecer. Por isso o Brasil é um país que foi fundado nessas condições, que ainda permanecem, porque também não criou mecanismos de enfrentamento a essas estruturas.

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Djamila com a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro
Djamila com a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro (Foto: Josemar Afrovulto / Divulgação)

Como você vê as manifestações e o Movimento Vidas Negras Importam?

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Penso que elas são importantes, os Estados Unidos têm um conceito diferente do Brasil, né, o conceito de segregação legal. Apesar de aqui no Brasil a gente não tem uma segregação legal, a gente tem uma segregação institucional. Vejo como muito importante porque, primeiro, pra denunciar a violência que as populações negras sofrem lá. E que acabou impulsionando manifestações em várias outras partes do mundo. Achei muito positivo de fazer com que pessoas de outros lugares, eu vi manifestações em países da Europa, como Portugal, Alemanha, França… Impulsionou e esse debate acabou tendo visibilidade.

E aqui no Brasil, apesar de a gente ter uma realidade até mais violenta com a população negra, muitas vezes as pessoas naturalizam as violências que acontecem aqui. E quando acontece algo como aconteceu nos EUA, as manifestações servem para acordar até algumas pessoas aqui, pra fixar esse problema no nosso consciente. Vejo muito positivamente, um princípio de basta a essas violências históricas, que acabou também impulsionando mais conscientização em outras partes do mundo.

Você escreveu o livro “Pequeno manual antirracista”, com 10 lições para abordar as origens do racismo e como combatê-lo. Como os brancos podem contribuir na luta contra o racismo?

Penso que o primeiro passo é entender que essa questão do racismo diz respeito a toda a sociedade, impacta a vida das populações negras de forma a oprimi-las e impacta as populações brancas de modo a beneficiá-las. É fundamental o entendimento sobre como funcionam esses mecanismos. Muitas vezes o entendimento é achar que o fato de não destratar pessoas negras já é um ato antirracista. Claro que é, mas é mais do que isso. É entender como essa estrutura funciona e como o meio em que você está pode criar ações antirracistas. É fundamental entender os processos históricos que criaram essas desigualdades, para que possa criar mecanismos de enfrentá-los.

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Sempre digo que antes de discutir diversidade, a gente precisa olhar o nível social da desigualdade. As pessoas vão entender como a sociedade foi criada, vão entender a sua responsabilidade em lutar contra essa opressão. O primeiro passo é o conhecimento sobre esse tema, porque esse conhecimento vai orientar a prática.

Oportunidade é uma palavra-chave quando olhamos para a educação e também o mercado de trabalho. Como mudar essa realidade e criar um ambiente em que tenhamos cada vez mais condições de igualdade e oportunidade para brancos, pardos, negros, amarelos e índios?

Creio que o primeiro passo é a gente continuar lutando pela ampliação das políticas públicas. Faço parte de uma geração que teve acesso a políticas públicas através da educação, fui a primeira geração da minha família a ter acesso à universidade por conta dessas políticas públicas. Penso que é importantíssimo a gente apoiar projetos que sejam comprometidos com essas ampliações, no campo público.

No campo privado, penso que é importante as empresas entenderem a necessidade de comitês de diversidade, mas que façam, que tenham ações e metas como algumas já têm aqui no Brasil. Entender a importância de um ambiente mais diverso, da ampliação do acesso a essas pessoas. Um exemplo simples: se você coloca uma vaga que exige inglês fluente, isso significa que muitas pessoas, de grupos que não têm as mesmas oportunidades, não vão nem se candidatar a essa vaga. É necessário pensar como atrair as pessoas para determinadas vagas, como construir espaço que amplie o acesso a grupos que geralmente ficam fora dessas oportunidades.

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Quando a gente diz que a questão é de oportunidade, que não é capacidade, porque capacidade nós sabemos que temos. A importância é criar essas oportunidades, esses espaços para oportunizar o acesso desses grupos que historicamente estiveram apartados.

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Djamila fala com a população nas ruas do Rio de Janeiro em evento antes da pandemia
Djamila fala com a população nas ruas do Rio de Janeiro em evento antes da pandemia (Foto: Mídia Ninja / Divulgação)

Qual é a importância da lei das cotas nesse contexto?

Ela foi fundamental. A primeira universidade a aderir foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2001, a segunda foi a UnB (Universidade de Brasília), em 2004, e a lei de cotas é de 2012, em todas as universidades federais. Foi importantíssimo, porque abriu o acesso às pessoas a estes espaços. Só que a gente não pode achar que todas as pessoas têm as mesmas oportunidades. Fui professora na escola pública, o aluno que estuda à noite e trabalha de dia numa escola pública que, infelizmente, não é de qualidade, e o aluno que estuda numa escola particular, come bem, tem acesso a idiomas, este aluno vai ter muito mais condições concretas de passar no vestibular.

Então é necessário que, como essas oportunidades não foram igualadas já lá no início, pelo menos no ensino superior sejam criados mecanismos para que aquele aluno que estudou a vida inteira na escola pública tenha direito à universidade. Porque é necessário entender que ele parte de um conceito totalmente diferente, porque ele não tem as mesas condições concretas. A lei de cotas é fundamental para diminuir isso, esse abismo social que existe. Ela não é para ser o único mecanismo, nem para ser para sempre, mas é necessário enquanto essas disparidades ainda existirem. E as pesquisas mostram quanto que isso melhorou a universidade pública, aumentou o acesso de pessoas negras e pobres nas universidades e diminuiu, de certa maneira, essas disparidades históricas.

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O Brasil vive uma inversão atípica na educação. Muitos estudantes de escolas públicas no ensino médio ao tentar o ingresso no ensino superior migram para instituições privadas, enquanto alunos de escolas particulares acabam conquistando as vagas de universidades e instituições públicas de graduação. Como mudar isso?

Ótima pergunta porque acaba mostrando essas contradições do Brasil e essas disparidades. A universidade pública, que deveria ser de fato para todos, acaba sendo para aqueles que tiveram oportunidades de estudar em instituições particulares. A mudança passa por investimento na educação pública, desde a base. Isso é fundamental. E com a ampliação de políticas afirmativas, como a lei de cotas, e a expansão das universidades públicas.

Na última semana, você assumiu emprestado o controle do perfil do comediante Paulo Gustavo no Instagram, que tem mais de 13,6 milhões de seguidores, para abordar as relações raciais no Brasil. Como tem sido essa experiência?

Tem sido uma experiência muito interessante, de dialogar com um público enorme, que a gente não tem acesso, mas também dialogar com um público que muitas vezes não está acostumado com esse tipo de discussão. A resposta tem sido muito positiva das pessoas, de entender a importância desse debate. A atitude do Paulo mostra um posicionamento, uma ação para além de hashtag, uma ação que terá um mês numa plataforma que é enorme. E também (a oportunidade) de eu apresentar autores e autoras que vêm discutindo esses temas historicamente e muitas vezes acabam não tendo o reconhecimento devido.

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Tem sido uma experiência muito interessante, de troca, de diálogo, mas, sobretudo, de amplificar vozes. Vejo como uma oportunidade de dialogar e trazer reflexões de um debate que é fundamental para a sociedade brasileira.

Tem tido diálogo nessa experiência? Ultimamente tem sido difícil dialogar, sobretudo nas redes sociais.

Claro que é difícil ter diálogo num momento como esse, de muitos ataques à ciência, de ataques às universidades… As pessoas são muito presas em opiniões vazias. Mas na página do Paulo tem sido uma experiência interessante. As pessoas estão de fato trocando, querendo tirar suas dúvidas, querendo escutar. Existe diálogo quando um fala e o outro escuta. Claro que não é sempre que a gente encontra esses espaços, mas neste especificamente tem havido. Mas a gente tem muita dificuldade no cenário como o do Brasil hoje, de dialogar. Justamente por isso, atitudes como a do Paulo são importantes porque contribuem para essa possibilidade de diálogo num momento de muitos ataques.

Djamila sorrindo
“É importante entender que a gente não vive sozinho, a gente vive em sociedade, o que a gente faz importa na vida das outras pessoas”, reflete Djamila (Foto: Christian Braga / Divulgação)

Qual foi o episódio de racismo mais marcante que você enfrentou? Você poderia compartilhar?

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Como todas as crianças negras, no ambiente escolar, né, nosso primeiro contato com o racismo. Na escola, desde a minha educação básica, foram experiências muito duras. Desde não ter a minha história contada lá, a história é contada como se não existisse vida pregressa na África, como se não tivesse havido resistência, quilombos, várias manifestações contrárias à escravidão. Violências que a gente sofre no ambiente escolar e que são naturalizadas numa época em que os educadores não tinham preparo nenhum para lidar, e nós, como crianças negras, tínhamos que viver num ambiente muito hostil. Piadas por causa do cabelo, das características. Isso era quase que diário.

Digo que o ambiente durante a minha fase da infância e adolescência foram fases de muitos ataques e muitas violências. E a segunda violência que me toca é a naturalização delas. E quando a gente reclamava aos professores à época e eles diziam: “Mas é brincadeira, deixa isso pra lá”. E isso impacta na construção da nossa autoestima, muitas vezes a gente fica insegura, afeta a nossa aprendizagem. 

Tem uma frase que eu uso no meu livro “Quem tem medo do feminismo negro” que é: “Nunca fui tímida, fui silenciada”. Eu não era uma criança tímida, era uma criança extremamente extrovertida em casa, mas quando fui para o ambiente escolar eu virei uma criança silenciada, que ficava quieta e calada, por conta de todas as violências que eram permitidas dentro daquele espaço.

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Hoje é possível dizer que você conquistou a mobilidade social, que muitos negros não conseguem. Como você fez para furar o bloqueio?

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Isso se deu através da educação. Por isso é tão importante políticas públicas na área da educação. Fui a primeira pessoa da minha família a ter acesso à universidade, e depois da faculdade que consegui mais oportunidades. Então, fiz parte dessa geração que teve essa oportunidade da educação, por isso que é tão importante apoiar.

Sou de Santos (SP), meu pai era estivador e a gente estudava no Colégio Moderno, que era mantido pela categoria. Meu pai era um homem que não teve acesso à educação formal, mas era um homem extremamente culto e desde cedo eu e meus irmãos tivemos acesso a debates fundamentais, a leitura. Sou uma leitora fluente desde os seis anos de idade, meu pai me levava ao teatro, levava a manifestações desde criança. Meu pai era militante do movimento negro. Isso contribuiu muito para minha formação política intelectual.

Desde criança tive uma educação muito incomum do que as pessoas do mesmo grupo social que eu vim, por conta de ter tido um pai ativista e militante. Trabalhei em organizações, fui voluntária de um cursinho pré-vestibular para jovens de periferia, então, essa minha construção como ativista, desde a infância, contribuiu muito para minhas escolhas.

Nos últimos dias, choramos a morte de um brasileiro por minuto, em média, durante a pandemia da Covid-19. A população negra convive com um cenário similar há muito mais tempo, por conta da violência. Como vamos conseguir mudar essa realidade da marginalização dos negros no Brasil?

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É difícil mudar um problema que tem raízes profundas. Penso que o primeiro passo é a conscientização. É fundamental que a gente incentive todas essas questões. Mas, de novo, a gente precisa estar antenado ao que está acontecendo no Brasil hoje. Porque a gente vive um cenário muito complexo, de retrocesso de políticas públicas que foram importantes para a população negra. Então, o primeiro passo é a conscientização das ações que se pode tomar no âmbito individual, de cada um ter a consciência, de as empresas terem um plano de diversidade, ter educador que trabalhe esse tema nas salas de aula.

Acho que é importante a gente cobrar o poder público, que a gente tem dispositivos legais, como a Lei 10.639/03, que incluiu o ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas, só que muita gente nem sabe da existência dessa lei. É importante a gente conhecer a história. E no âmbito mais amplo, a gente tem que ter a consciência de quais são os projetos que a gente está apoiando.

Lista negra, ovelha negra, mercado negro… Essas e muitas outras expressões remetem a fatos negativos e ajudam a reforçar o racismo. Como mudar isso?

O primeiro passo é não achar que é mimimi. A linguagem carrega valores na sociedade, ela não é neutra. Quando a gente estuda filósofos da linguagem, por exemplo, existe uma linguagem como forma de vida, a linguagem cria a nossa visão de mundo. Se a sociedade é carregada por esses valores, sexista, racista, a linguagem também será. Então, esse é o primeiro entendimento. E a partir disso, a partir de uma conscientização, que isso oriente nossas práticas para mudar, para não dizer, para não repetir.

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Porque se há algo que ofende um grupo, por que eu não posso não dizer aquilo? Se existem palavras e expressões que ofendem determinados grupos, o que perco em respeitá-los e não dizer isso? Falta um pouco das pessoas, que pensam: “Ah, mas isso é besteira!”. Pode ser pra você. Porque talvez você não entenda todo aquele contexto, quanto aquilo afeta outra comunidade. Mas, se faz sentido para determinados grupos, é importante entender que a gente não vive sozinho, a gente vive em sociedade, o que a gente faz importa na vida das outras pessoas. A empatia, nesse sentido, é fundamental.

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No discurso lendário de agosto de 1963, Martin Luther King dizia ter sonhado com uma sociedade justa, livre e fraterna. E você, como filósofa e ativista negra, qual é o seu sonho?

Que as diferenças não signifiquem desigualdades. Que diferentes somos, que bom que somos diferentes uns dos outros, o problema é quando diferença significa desigualdade. Creio que as diferenças sejam vistas como fagulhas criativas, de potência, e não como justificativa para opressão, para manter determinados grupos num lugar não humanitário.

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