Aos 75 anos, o músico que foi colocado no balaio dos artistas malditos dos anos 70 e 80, por não se enquadrar na indústria fonográfica, se apresenta como uma besta-fera frente ao trevoso tempo presente. Jards Macalé, que esteve próximo dos tropicalistas no início do movimento, descolou do grupo e seguiu uma trajetória à margem. Pelas beiradas, foi e é considerado uma joia radiante da música brasileira.

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Agora, lança Besta Fera depois de 20 anos sem produzir um álbum de inéditas, com um grupo de músicos jovens, como Romulo Fróes e Kiko Dinucci – que fizeram parte dos recentes sucessos de Elza Soares. Com fogo nas ventas, Macalé e os rapazes de São Paulo colocaram no mundo um trabalho que ilumina, com realismo mágico, o ano de 2019. Nesta entrevista, o artista fala da energia com que fez este trabalho, a mesma que moveu seus 54 anos de carreira.

Capa que já nasce icônica

A imagem que estampa Besta Fera (abaixo) foi a última feita por Cafi, fotógrafo que assinou capas como a de Clube da Esquina 1 (1972) – aquela com dois meninos sentados encarando a câmera. O álbum está disponível em plataformas digitais (Spotify acima e Youtube) e terá edições em CD e vinil. A música Trevas foi a primeira a ganhar clipe e há planos para produzir o de Vampiro de Copacabana.

A conversa com Macalé, por telefone, rolou na segunda-feira (11). Confira:

O que você tem dito é que o disco fala do agora, de 2019. E ele têm faixas com temática sombria, Besta fera, Trevas. A leitura que o Besta Fera faz do presente é pessimista?

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Bom, nós vivemos um momento difícil. Hoje (segunda-feira) mesmo morreu o Boechat. Agora. 2019 começou com uma série de tragédias. Os meninos do Flamengo, Brumadinho. Mas eu não imaginava, porque 2018 já estava uma coisa difícil. Já tava começando muito difícil a questão do governo ter mudado, a forma de se apresentar do governo para nós artistas. Estava uma coisa meio nebulosa. E se radicalizou no começo do ano com a morte do meu grande amigo Cafi, que fez a capa do disco, né. Então ficou um negócio complicado.

As músicas, Trevas e Besta Fera tomaram corpo. Cada música ali tomou um corpo diante da leitura de cada um. Mas para mim, pelos arranjos, pela coisa instrumental e tal, ele é um disco luminoso.

E não pessimista?

Não é que seja pessimista. Ele é realista.

Ainda nisso, o disco é atualíssimo e ao mesmo tempo traz Gregório de Matos (na letra de Besta Fera), Ezra Pound (em Trevas) musicados. Isso significa está à beira, que a gente está no limite e isso não é de agora. A quanto tempo que você se encontra na beirada?

A Ava (Rocha, cantora e letrista), eu a vi na barriga. Eu sou amigo de Glauber (Rocha, cineasta que morreu em 1981), da mãe dela, Ana Paula. E quando eu pedi que amigos me enviassem letras, ela me mandou essa Limite. Eu achei extraordinária, justamente fala desse momento; Até brinquei com ela que fala do Limite de Mario Peixoto, o filme, aquele famoso filme.

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E é a beira de tudo, né. Beira do caos, beira do mundo, a beira do poço sem fundo, tanto faz a beira, a beira da esquerda, da direita e da borda. Enfim, a beira do infinito, a beira do mal, a beira do bem, da violência, da fome, do sonho. O que é verdade. A gente vive na beira, na borda.

O disco é fruto de um trabalho coletivo. Como foi o aprendizado? O que de lição saiu de trabalhar com essa galera (Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Guilherme Held, Rodrigo Campos)? E o que você acha que passou para eles, como foi essa troca?

O início de tudo eu acho nós fizemos há alguns anos. Eu estou fazendo discos com as mais variadas pessoas das mais variadas gerações, principalmente essa geração dos 40 anos para baixo. Então quando eu fiz minha banda, Let’s Play That, seis, sete anos atrás, eu conheci, por exemplo, Thomas Harres, baterista extraordinário, e também o Leandro Joaquim que foi trompetista da minha banda. Eu disse que gostaria muito de ter músicos jovens, para gente tocar, para a gente ter uma banda legal, com fogo nas ventas.

E aí eles me apresentaram vários outros nomes que formaram a banda finalmente. A gente deu o nome de Let’s play that. Ricardo Rito no piano, Zé Victor na guitarra, Leandro Joaquim no trompete, Thiago Queiroz no sax barítono e flautas. Pedro Dantas no baixo, o Thomas Harres na bateria. Fizemos um sexteto maravilhoso e viemos andando por aí fazendo coisa. Aí nos aproximamos cada vez mais, trocando influências.

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Eles me ensinam muita coisa. Eles me tem como referência, mas eu também aprendo com cada um, com o jeito de cada um tocar, com as preferências de cada um. São coisas importantes para o meu trabalho e para me enriquecer. Foi isso que aconteceu: somamos.

Você fez o disco em companhia de paulistas e disse que queria mesmo fazer um trabalho paulioca (paulista + carioca). Fora fazer o disco em SP e com os músicos paulistas: O que São Paulo inspira para a arte, e mais especificamente, para a criação desse álbum?

Bom, se você ver em Longo Caminho do Sol, a faixa, você vê que tem uma coisa de Adoniran (Barbosa) por ali, samba, um tipo de samba paulista mesmo. Tem também a invenção mais de sonoridade mais de surpresas que acontecem, de riscos. Tanto no Vampiro de Copacabana, Peixes, tem essa aventura ali. É uma coisa bem paulista.

Foram vinte anos sem lançar inéditas. Você produziu nesses anos, continuou aí. Mas qual foi o clique para lançar coisa nova?

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Foi o edital que nós ganhamos da Natura Musical. Cujo projeto, colocava o edital, era um disco de inéditas. Então havia um compromisso e foi realizado esse compromisso. Cumprimos o compromisso.

No disco O banquete dos Mendigos (1974), você explicou para o pedro Bial a situação em que gravou. Você recorreu às Nações Unidas, digamos assim, para dar um recado contundente para aquela época. E para agora, qual a liberdade e o desafio para dar o recado?

O recado é o que a gente tá vivendo agora. Um momento trevoso, complicado no mundo e no Brasil. Guerra para cá e para lá. Imigrantes. O Brasil com essas propostas malucas, esquizofrênicas. Projetos doidos para educação. Então é um comentário sobre essa maluquice.

Você fala da atualidade, como falou naquela época. como Você se vê perto disso, conseguindo entender o que está acontecendo?

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Tirando a maluquice,A é um momento de contraposições muito profundas. As conquistas humanas, humanitárias que se conseguiram. As conquistas das mulheres, dos LGBTs, dos homens e das crianças etc e tal. Há toda uma proposta de contradizer isso e colocar isso num passado remoto. Coisa muito medíocre.

A energia vai continuar para sair e fazer shows desse trabalho de inéditas, disseminar este disco, certo? Quando vai ser o show de lançamento?

Os shows serão em 23 de março em São Paulo, no auditório do Ibirapuera e , em 6 de abril, no Circo Voador, Rio de Janeiro. A disposição é a mesma. Estava fazendo show com banda ou em duo ou trio baixo e bateria e violão. Vivo de shows. Não vivo de direitos autorais. E o plano é rodar o Brasil e alhures.

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