Delegada Patrícia Zimmermann D´Ávila, coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso em SC
Delegada Patrícia Zimmermann D´Ávila, coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso em SC (Foto: Tiago Ghizoni / NSC Total)

O número de casos de feminicídio em Santa Catarina caiu em relação a 2019, ano em que o Estado registrou a marca de 59 vítimas de violência doméstica mortas. Independentemente disso, o assunto é relevante para estar em constante reflexão.

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No último dia 19, o assassinato da diretora de uma escola dentro da própria unidade de educação estadual chocou o Estado. Elenir de Siqueira Fontão, 49 anos, já havia registrado boletim de ocorrência contra o ex-companheiro. Por que não funcionou?

Na entrevista a seguir, a delegada Patrícia Zimmermann D´Ávila, coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso em Santa Catarina, explica o que aconteceu e como as mulheres que sofrem com a violência doméstica devem proceder para se sentirem seguras, dentro das ferramentas disponíveis pela lei. Patrícia reforça a importância das medidas protetivas:

– A medida protetiva tem um papel importante sim na proteção dessa mulher, não é um mero papel. O agressor infrator pode ser preso tanto em flagrante delito como preventivamente.

A delegada discorre ainda sobre características e o comportamento dos autores de feminicídio e explica o projeto da Polícia Civil com adolescentes nas escolas para mudar a realidade. Confira:

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A professora Elenir de Siqueira Fontão registrou boletins de ocorrência contra o ex-companheiro, mas ela não fez a representação. O que é uma coisa, e o que é a outra? Para a mulher que está sendo vítima de violência, um boletim de ocorrência não basta?

Temos crimes de violência contra a mulher em que além do boletim de ocorrência (BO) a vítima precisa autorizar o Estado para que ele inicie a apuração daquele crime. E esse é o caso da ameaça. Então, o que tem acontecido em alguns casos? As vítimas fazem um BO pelo crime de ameaça, mas não representam, ou seja, não autorizam a Polícia Civil a iniciar um inquérito. Sem a representação, não há inquérito policial, não há processo crime e a pessoa que praticou o crime acaba ficando sem responder por aquela conduta. Então, é necessário que as vítimas além de comunicar, que elas se encorajem e forneçam a representação. Porque nós temos visto que crimes graves, como feminicídio e a lesão corporal, têm sempre acontecido uma ameaça anterior.

A gente precisa enfrentar essa violência já na primeira ameaça.

E como a mulher faz essa representação?

A representação ela fornece já na delegacia. No momento em que ela faz o BO ela assina mais um documento, que chama-se Termo de Representação. Esse documento habilita o delegado a instaurar o inquérito policial, e também serve para que o promotor (de Justiça) entre com a ação penal. Então, basta ir à delegacia, fazer o BO e assinar o termo de representação, na delegacia.

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Mas a vítima é informada disso na delegacia?

Todos os BOs que nós fizemos nas delegacias a gente tem orientado às vítimas. Inclusive, os plantonistas têm que constar a informação se a vítima deseja ou não representar o agressor. Então, sempre que ela vai à uma delegacia de polícia é obrigação do policial civil passar essa informação e constar isso no boletim de ocorrência.

Além da ameaça, há outros tipos de crimes que podem terminar em um feminicídio e também precisam de representação?

Outro crime muito comum de acontecer é a chamada injúria ou a difamação, em que a mulher é ofendida moralmente. Esses são crimes que precisam da representação da vítima. Então, por isso que tanto a ameaça como injúria e difamação ela precisa se manifestar. Já na lesão corporal, não. Se a mulher é agredida e daquela agressão resta uma lesão, resta um hematoma, qualquer pessoa pode denunciar e nós vamos iniciar a investigação, independente da vítima autorizar ou não. Agora, é importante esclarecer que pedido de medida protetiva de urgência é algo que só a vítima pode solicitar. Não é algo que a polícia pode fazer por ela. Então, ela precisa fazer um pedido de medida protetiva.

A gente sempre orienta, naqueles casos em que verificamos uma situação de risco mais denso, a importância de se pedir a medida protetiva.

A delegada já atua com esse tipo de caso há muito tempo…

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Desde 2012 eu venho à frente de uma Dpcami, e desde 2015 à frente da coordenadoria. Mas desde que iniciei minha carreira como delegada, há mais de 20 anos, atendo vítimas de violência doméstica e familiar. Lembro bem que não tínhamos tanta forma de proteção como a gente tem hoje, na Lei Maria da Penha. A lei é de 2006. Então, desde 2006 que o Estado conta com uma forma mais eficaz de proteção. Importante a gente falar que a medida protetiva tem um papel importante sim na proteção dessa mulher, não é um mero papel. A pessoa que é notificada de uma medida protetiva concedida e ela descumpre, o agressor infrator pode ser preso tanto em flagrante delito como preventivamente. Então, ela tem muita força quando a gente trabalha na proteção dessas mulheres.

Com toda essa experiência, qual característica está presente nos casos de femincídio? Existe um padrão?

O padrão que a gente vê, até alguns chamam de masculinidade tóxica, é aquele comportamento agressivo, opressor do infrator, que não aceita o fim do relacionamento, que não aceita o distanciamento da vítima e tenta sempre manter um controle muito grande sobre essa mulher. Então, essa mulher vem sido controlada, vem sido ameaçada, vem sido constrangida, ela é isolada do convívio social. E esse padrão se repete.

O ciúme excessivo, controle excessivo e a não aceitação muitas das vezes do fim do relacionamento.

Como a mulher pode se proteger? E aí essa pergunta é tanto um conselho de mulher para mulher a partir da sua experiência, quanto de ferramentas oferecidas pelo Estado.

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Vou falar como delegada de polícia há mais de 20 anos e como mãe de duas adolescentes. A mulher, na questão do comportamento, tem que deixar bem claro para aquele homem que ela não tolera nenhuma forma de intimidação, de humilhação, de controle. Ela não pode tolerar nenhuma forma de abuso já no início, já no namoro. E posteriormente, se há esse caso de violência instalada, vá à uma delegacia de polícia, faça um boletim de ocorrência, aceite a orientação do profissional que está ali para lhe atender. A Polícia Civil conta com delegacias em todas as cidades, todas as unidades têm competência para atuar.

Não deixe que a violência se agrave. E se o policial lhe aconselha fazer o pedido de medida protetiva, siga esse conselho, porque ele está observando uma situação de risco.
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Patrícia atua na coordenadoria das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de SC desde 2015 (Foto: Tiago Ghizoni)

A dependência financeira pode ser um fator que dificulta ou atrapalha a mulher a ter esse comportamento independente diante do parceiro?

A dependência financeira e o medo daquela mulher são pontos importantes a serem observados. Agora, a gente vê que ainda hoje é muito forte a dependência emocional. É aquela situação da mulher que é criada para só ser feliz ao lado de um companheiro, achar que ela é responsável por manter a harmonia da sua família, que ela vai conseguir “arrumar” aquele companheiro e ela acaba sendo cada vez mais humilhada e sofrendo cada vez mais violência. A gente precisa mudar a mentalidade dessa mulher. Pode ser sim, vai ser sim muito feliz longe desse agressor.

Porque se a pessoa não tem um bom comportamento, não aceita ajuda, não aceita interferência, não é aquela mulher que vai conseguir fazer com aquele agressor mude de comportamento, que muitas vezes vem por anos e ele já pode ter feito com outras mulheres anteriormente.

E a Justiça concede com frequência as medidas protetivas, ou há alguma dificuldade?

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Os juízes têm sido muito criteriosos na questão da análise e sempre que há uma situação de risco e uma justificação para a concessão daquela medida, eles têm concedido. Temos algumas medidas que são restritivas aos infratores, como proibição de frequentar determinados lugares, a proibição de andar armado e a suspensão do porte para aqueles que têm posse da arma de fogo, e também a proibição de manter contato com familiares. Então, têm pais que às vezes ficam distante dos filhos até que a situação se regularize. Como há direitos tanto da vítima como do infrator, os juízes têm concedido, na grande maioria das vezes, verificado a situação de risco e estando presente as condições que justifiquem a concessão da medida. E isso tem sido muito importante na proteção dessas mulheres.

O suspeito no caso da diretoria Elenir Fontão foi encontrado morto na cela onde estava preso, segundo o próprio Deap, sozinho. Um forte indício de ter tirado a própria vida. O que geralmente acontece com os assassinos depois de matarem as companheiras?

É uma coisa que nos chama muito a atenção. Homens autores de feminicídio que se suicidam em seguida. E esse comportamento ele se repete em muitos casos. Isso faz ver como esses homens estão perturbados mentalmente, ao ponto de tirar a vida daquela pessoa que eles dizem que amam, mas que na verdade odeiam porque por amor ninguém mata, e tiram a própria vida. E têm casos de autores que tiram a vida de um familiar próximo. Isso é algo que choca. E faz com que a gente veja que aquela simples ameaça, dependendo de alguns sinais característicos, ela pode se tornar mais grave.

A gente não pode baixar a guarda para nenhuma forma de violência contra a mulher. Outra coisa importante, todos os autores de feminicídio que não se matam são presos já no começo do inquérito policial. Não há impunidade em Santa Catarina.

Entre os autores presos, eles costumam expressar arrependimento?

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O que nos chama a atenção, a gente vê que muitos desses autores, quando vão já na fase do interrogatório, eles sempre se referem àquela companheira como um objeto ou algo seu. E falam sempre dela no presente: “A minha mulher”. Eles repetem esse comportamento de posse, como se essa mulher ainda estivesse aqui presente fisicamente. Não temos visto arrependimento nesses casos. E uma coisa importante a gente falar: todos os crimes contra a vida, a gente nunca consegue voltar no estado anterior das coisas.

A que penas estão sujeitos os autores de femincídio?

A pena mínima do feminicídio é de 12 anos. Ela vai de 12 a 30 anos. É uma pena muito grave, muito séria. E o tempo de condenação de prisão é muito grande.

Como se muda essa realidade?

Temos acreditado muito nos projetos das escolas. Por isso, o programa “Polícia Civil por elas nas escolas” está discutindo a questão da violência com os adolescentes dos 8º e 9º anos do ensino fundamental. Isso tudo tem um resultado muito positivo. E nós temos visto com muito bons olhos os grupos de homens para trabalhar essa questão de reflexão com os autores de violência já nos primeiros casos de violência e a rede de apoio para as mulheres, que vale tanto o grupo de mulheres como os grupos de empoderamento.

A gente tem que tratar o problema que já está instalado na comunidade nos dias de hoje e preparar a próxima geração. É assim que a gente espera vencer essa questão e diminuir esses índices, que são muito altos.

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