O futuro
Gostar de carro era coisa do passado. IPVA, seguro, manobrista, flanelinha, Zona Azul, tudo isso fazia parte das histórias contadas pelos pais.
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Músicas muito antigas soavam até absurdas. Trabalhar, trabalhar “pra ter fom fom” não era mais coisa de cara esperto. Entrar na Augusta a 120 por hora ou andar nas curvas da Estrada de Santos sem trânsito nenhum?
Aquela geração havia nascido dentro de automóveis, a caminho da maternidade. Naquela época, naquela ilha, mal chegavam ao mundo, as crianças passavam seus primeiros meses de vida presas num congestionamento. Os partos eram feitos por médicos de plantão. Na verdade, a caminho do plantão, presos no mesmo trânsito.
Não havia mais pista livre naquela cidade. O horário de pico fora estendido para 24 horas. Tudo era um imenso e eterno engarrafamento.
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Natural que as crianças nascidas naquela época, quando adultos, se afastassem dos automóveis. Era uma geração que também havia presenciado uma grande catástrofe: a queda da ponte.
O passado
Um derradeiro laudo técnico apontava que a má conservação, somada à trepidação causada pelo excesso de veículos ligados ao mesmo tempo nos congestionamentos da cidade, levaria a estrutura a tremer a ponto de cair.
Muitos diziam que era um laudo manipulado pela oposição, a fim de prejudicar a reeleição do governador. Outros acreditavam que era mesmo um diagnóstico terminal. A queda da ponte seria o estopim de um tumor que se espalhava pela ilha e mostrava sinais pelas paredes rachadas dos edifícios construídos no recente boom imobiliário.
De uma hora para outra o governo começou uma campanha para que as pessoas deixassem os carros em casa. Mas não havia transporte marítimo, o catamarã não tinha saído do papel, nem o metrô, nem as faixas exclusivas para ônibus, muito menos as ciclofaixas. Era difícil deixar o carro em casa. Talvez fosse tarde demais para salvar a ponte.
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Muito se falou sobre sinais de um grande desastre na ilha, principalmente após o mítico apagão ocorrido nos anos 2000, anunciado por entidades tão prodigiosas quando Nostradamus e o colunista Cacau Menezes.
Morro acima, praia adentro, o número de lâmpadas acesas dentro de novos edifícios e nos faróis dos carros só aumentou, ignorando qualquer prenúncio dos deuses.
E depois de longa agonia, finalmente a ponte desabou. A festa acabou. A luz apagou. A ponte caiu. E agora, mané?
A imagem do desabar, gravada por diversos ângulos, repetida à exaustão nos telejornais e pela internet no mundo todo, só aumentava a dor e o pesar dos locais, até dos que criticavam a manutenção da ponte. Chegaram a dizer que caíram nossas torres gêmeas, mas que os terroristas éramos todos nós.
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O presente
Alguns anos se passaram e a Ponte Hercílio Luz era só uma ruína. O pedaço que restava fazia as vezes de cartão postal da cidade. Uma placa dizia que “o governo continua trabalhando para devolver este patrimônio à população”.
Era uma campanha que pedia contribuições para uma reconstituição holográfica da ponte. Algo que já havia sido feito com a imagem de cantores famosos falecidos. O projeto dependia de equipamento importado, era caro. Havia um mecanismo de renúncia fiscal e todos poderiam contribuir, pessoa física e pessoa jurídica. As autoridades esperavam arrecadar o valor e, com a imagem holográfica, dar à ponte a chance da vida eterna. O projeto ganhou alguns nomes: a Ponte Drácula ou o Fantasma da Ponte.