*Por Steven Erlanger
Bruxelas – O "pavilhão dourado" da Europa está vazio, fazendo eco; as grandes praças estão desertas, os museus, de portas fechadas; as igrejas hesitam em realizar missas, os restaurantes finos e bares descolados estão temporariamente desativados.
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O coronavírus não está só se espalhando, mas impregnando as sociedades com uma sensação de insegurança, medo e fragmentação. Acima de tudo, arrancou da humanidade seu conceito de controle e a invencibilidade de suas instituições, da ciência, da tecnologia e das democracias.
Se isso vale para praticamente todos os lugares aonde o vírus chega, é ainda mais verdadeiro na Europa, com seu histórico do Iluminismo, onde a vida é vivida basicamente em uma escala íntima, com encontros nas ruas ou nos cafés, amigos cumprimentando amigos com beijinhos no rosto.
Não mais. Hoje, os europeus são instruídos a se esconder, erguer fronteiras entre países, dentro de suas cidades e de seus bairros, e à volta de suas casas – para se protegerem dos vizinhos e até dos próprios netos.
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Enfrentando um vírus que não respeita fronteiras, esta Europa moderna e sem limites as está erguendo por toda parte. Entretanto, os diferentes países encontram diferentes respostas, e cada passo discreto e discrepante só faz aumentar a sensação de afastamento e de que o problema é responsabilidade do outro.
"O paradoxo de um vírus que não conhece limites é que a solução exige demarcações, não só entre os países, mas também entre as pessoas. Acontece que instaurá-las de forma desordenada não ajuda", explica Nathalie Tocci, assessora da União Europeia. De fato, instaurá-las, ou não, talvez não faça muita diferença, pois a ameaça invisível já se encontra ali.

Mesmo assim, é inevitável que todos se voltem para as autoridades em busca de conhecimento, controle e confiança. Conforme a pandemia se espalha da Itália para a Espanha, França, Alemanha e além, aumenta a sensação de que são necessárias medidas duras, autoritárias até, muitas inclusive tomadas pela China.
Depois de assistir à epidemia no país asiático com uma indiferença extraordinária, o continente se apavorou com a Itália. De repente, muitos países estão tentando se isolar para proteger seu território e seus cidadãos. A ideia da solidariedade europeia e de uma Europa sem fronteiras na qual os cidadãos são livres para viajar e trabalhar nunca pareceu tão distante.
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Se a pandemia segue a mesma lógica da guerra, exigindo ações drásticas, o inimigo pode ser a pessoa ao seu lado.
"Não é mais uma questão de barreiras entre as nações, mas sim entre as pessoas. Agora o temor é do indivíduo. Todo mundo, qualquer um à sua volta, pode representar o perigo, ser portador do vírus. A pessoa talvez nem saiba do risco que representa. As únicas que não representam ameaça são as que você nunca vai conhecer, porque estão em casa", diz Ivan Krastev, diretor do Centro para Estratégias Liberais de Sófia, na Bulgária, e membro permanente do Instituto de Ciências Humanas de Viena.
"La bise", o beijo de boas-vindas, de repente se tornou perigoso, como também o abraço de felicidade ou de condolências.

Krastev escreve sobre a crise da imigração europeia com conhecimento de causa, considerando-a um choque tão grande quanto a queda do comunismo. "Mas agora ninguém fala de abrir fronteiras, pois não é só o imigrante que se teme, mas todo mundo", constata.
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A narrativa da crise da imigração incluiu metáforas de hordas, invasões e até insetos, e alegações de que os estrangeiros levavam doenças transmissíveis consigo. Queriam deixar sua vida pobre e horrível para viver em uma Europa que consideravam segura e rica. Só que agora esse resguardo não existe mais. "Agora, os imigrantes vão ter de ponderar o que é pior, a epidemia ou a guerra. Não dá para negociar com a doença nem fugir dela", diz Krastev.
Há uma década, o cientista político francês Dominique Moïsi, casado com uma italiana, escreveu um livro chamado "The Geopolitics of Emotion", explicando as dificuldades causadas pela globalização no que se refere a humilhação, esperança e medo.
"Atualmente, a emoção dominante é o temor. A crise do Covid-19 faz crescer a incerteza e o medo, acelerando um processo de ansiedade em relação a um mundo que já gira depressa demais. Com o terrorismo, o pânico pela economia, a incerteza estratégica, a mudança climática e a imigração, as bases parecem incertas e o futuro, imprevisível", afirma.

E agora chega o inimigo invisível. "Você pode pôr a mão em uma maçaneta e pegar o vírus; existe maior medo que esse?", questiona.
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"Sinto falta de abraçar e beijar meus netos, e já comecei a pensar na morte. Por outro lado, a mobilização da sociedade, mesmo mais difícil, é absolutamente necessária diante de um inimigo invisível. Paris enfrentou o terrorismo e viu 150 pessoas serem mortas em uma única noite, em 2015. Foi brutal, mas visível, palpável. No fim das contas, o número de vítimas do vírus será muito maior, mas é algo invisível, e nunca passamos por isso."
Por isso é tão difícil para os governos que aprenderam a pedir calma à sua população em tempos de terrorismo agora ter de aprender a assustá-las para que ajam pelo bem comum.
Durante a Peste Negra do século XIV, que fez inúmeras vítimas, as pessoas acreditavam que Deus condenara os mortos e escolhera quem poupar. "Mas em uma sociedade secular é mais difícil explicar as mortes com moralidade; o que há são teorias da conspiração, a ideia de um 'vírus estrangeiro', e até um porta-voz chinês sugerindo que o Exército dos EUA foi o responsável", conta Krastev.
Em 2003, George Steiner, o filósofo europeu morto no mês passado, aos 90 anos, escreveu um artigo, que ficou famoso, para o Instituto Nexus, chamado "The Idea of Europe". Mas essa ideia está sob ameaça.
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Ele escreve que a identidade cultural europeia se baseia em diversas características basicamente ausentes aos EUA, onde a cultura do carro, a amplidão dos subúrbios e os grandes espaços abertos criam uma sensação de isolamento.

Na Europa, a cultura é a dos restaurantes e cafés onde as pessoas se encontram, leem, escrevem, tramam. Há lugares para envolvimento e conspiração, para o debate intelectual e a fofoca, para a diversão e o poeta ou metafísico ao computador, abertos a todos, afirma ele.
A cultura europeia também valoriza o pedestre, baseada nas praças e ruas estreitas, que geralmente ganham nomes de acadêmicos e estadistas, famosos por suas obras e seus massacres. A Europa é "caminhável" e suas distâncias cabem na escala humana, escreve Steiner.
Em tempos de pandemia, com os estabelecimentos fechados e as praças vazias de turistas e moradores, essas características se veem destruídas, gerando isolamento e solidão, segundo Krastev.
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Ele mesmo está tentando decidir se fica em Viena ou leva a família para passar um mês na Bulgária, onde a estrutura médica é mais frágil, mas o vírus parece ser menos frequente, e onde ele conta com uma rede mais tradicional de familiares e amigos.
Questiona qual o lugar mais seguro, como todos os refugiados. Sua filha acaba de voltar da Espanha e ainda não percebeu por que não podia ficar mais lá. "Eu lhe disse que o país que ela tanto amava desapareceria em 48 horas."

Muitos mencionam "A Peste", romance alegórico publicado em 1947 por Albert Camus, vendo na obra uma lição não só de como as pessoas se comportam durante uma pandemia, mas de como a natureza reage, zombando de nossas pretensões.
Quando a peste bubônica finalmente dá uma trégua em sua cidade alegre, o dr. Bernard Rieux lembra que a doença "nunca morre ou desaparece", apenas faz uma pausa.
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"Mas virá talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordará seus ratos e os enviará para morrer em uma cidade feliz", lembra o personagem principal.
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