Não vou me juntar àqueles que insistentemente criticam a escola, desacreditam dela, a depreciam. Quero apostar em sua viabilidade para formar pessoas. Afinal, grande parte da população brasileira passa pela escola e esta pode ser uma travessia estética.
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Para Bachelard, o hábito é o pior inimigo da imaginação. Imaginar é desejar e proteger o que ainda está ausente. No livro A Poética do Espaço, o autor defende o direito e nosso dever de construir imagens de um espaço feliz. Resolvo trazer essa ideia para o espaço escola e perguntar o que andamos fazendo para proteger essa imagem de espaço feliz.
Precisamos aprender a defender esse espaço de forças adversas, de hostilidades. Aprender a imaginar como gostaríamos de ocupar esse espaço e protegê-lo. Um espaço que resguarde nossas frustrações, decepções e acolha nossos sucessos com a mesma medida. Aprender a habitar um espaço que se quer fazer feliz. Qualquer morada implica uma via dupla: ela se faz com gente e nós nos constituímos com ela. A experiência estética em geral depende de espaços cheios. Como diz Bachelard, é quase inimaginável pensar uma gaveta vazia. O devaneio se move pelo movimento do espaço ocupado. É difícil pensar uma sala de aula vazia, é difícil desejá-la. Imaginamos uma sala ocupada e criamos sonhos, desejos e expectativas.
Habitar um espaço é encontrar redutos onde possamos nos abrigar, por vezes nos encolher. Segundo Bachelard, só habita com intensidade aquele que aprendeu a se encolher. Todos temos as memórias dos cantos, espaços da intimidade que merecem ser protegidos para que a escola possa construir um espaço humano.
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Em uma escola é preciso imaginar a grandeza e a miniatura, o silêncio e barulho para salvaguardar as inevitabilidades. Do barulho pode surgir a criatividade. O silêncio pode dar em nada. Precisamos poder dizer como habitamos nosso espaço vital considerando todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos em um canto do mundo (Bachelard). Precisamos acreditar que a nossa memória poderá fixar lembranças de proteção e de experiências estéticas. Como estará sendo construída a memória de escola dos estudantes brasileiros? Qual é a nossa lembrança de escola? A vida começa mais fechada e protegida para que possa alargar-se e expandir-se.
Como são nossas salas de aula? De onde vêm a luz, os sussurros, o silêncio? O que está atravancando os movimentos do corpo e da mente? Têm espaço para o devaneio? Têm porões clandestinos? Que itinerários estão registrados nos caminhos que a sala de aula viabilizou? O espaço convida à ação, e antes da ação a imaginação trabalha.
O espaço é um lugar que dá ao ser humano razões para viver! Para habitar é preciso construir. Nossa atividade estética poderia ser ler nosso espaço, ler nossa escola. Ler nossa sala de aula. O que nos protege? Quais hostilidades estão aparecendo e por quê? Existe clima para a imaginação? Existe lugar para os espíritos livres? Ou temos de ser todos iguais, seguir uma mesma cartilha? A dissonância tem lugar, o espaço é arejado? O que me impede de sonhar e imaginar nesse espaço? Onde estão as rachaduras? Quais seriam os primeiros “consertos” necessários?
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Uma escola contemporânea talvez devesse estar ávida de ver, reparar quem são nossos alunos, o que interessa e o que não interessa, deveria interessar-se em tocá-los, em como estabelecer aprendizagens. Nossa visão não pode ser gulosa, ver mais do que existe, colocar no aluno o que lá não está. O riso irônico nem sempre pretende o constrangimento, o corpo que mexe não é deseducado, a voz que alardeia nem sempre quer interromper.
Existe uma luta que precisa acontecer contra a inadequação, a insuficiência, a mutilação de nossa cultura para resgatar o afeto perdido. Em tempos de ganância, aceleração, velocidade, abstinência moral e misticismos compensatórios, a imaginação como expressão da arte nos põe em outro ritmo, a pressa atropela, invade, impede. O oposto da pressa não é a lentidão, mas um deslocamento mais espaçoso, mais estético, silencioso e atento ao que nos passa enquanto andamos. A experiência para acontecer precisa de tempo e ritmo próprio.
É preciso desejar conservar o espaço vivo. Conservar remete à tradição. Não devemos pensar em mudar tudo, pois falhamos também quando não conservamos nada. O que deixamos de conservar em nossos processos educativos? Que tradição precisa de proteção?
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Crescer com os outros provoca novas estéticas que podem nos fazer habitar um lugar feliz. E felicidade não é essa coisa plena, simétrica, estável. Felicidade implica cavar em si mesmo e nos outros desejos e meios para movimentar-se, para criar, para sentir-se bem quando estamos com uma ideia na cabeça.
Nietzsche é definido por Bachelard como um poeta aéreo exatamente por essa sua capacidade de imaginar. O convite dele, na interpretação do autor acima se faz por meio da seguinte indagação:
Qual é, afinal, o peso que te impede voar comigo? Quem te obriga a ficar inerte sobre a terra? Sobe na minha balança e eu te direi se, a rigor, podes ser meu companheiro, meu discípulo. Eu te direi não teu peso, mas o teu futuro aéreo. O pesador é o mestre da leveza. (Bachelard, 1990, p. 138).
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Por ter a leveza alada, existe a possibilidade de pesar o mundo. Primeiro voar, depois conhecer a Terra, essa é a mensagem do poeta/filósofo. A defesa dele é reconhecer na verticalidade o limite da horizontalidade. Mas esse processo exige aprendizagem, pois quem quer aprender a voar deve aprender a ficar de pé, a andar, a correr, a saltar, a subir e a dançar, não se aprende a voar de repente. O que nos ensinaram foi contentar-se com o horizontal, rastejando, suplicando, esperando, contemplando, repetindo.
O espaço feliz também se articula com o abismo e com a capacidade de enfrentar adversidades. Implica ser arrojado, implica a vontade de potência, pois perto do abismo o destino do homem é cair. Mas pode ser diferente, pode implicar o arrojo, ao invés de cair pode subir. Contudo, esse subir não é eterno e constante, estaremos sempre diante do bem e do mal, do alto e do baixo, da possibilidade de subir, mas sempre presente a condição de cair. Por isso não teremos nunca uma vida horizontal, e ensinar as pessoas a viver sob essa ótica (a horizontalidade) dá no que dá: torna a vida uma farsa e a moralidade, um regramento. O peixe voador, a barca do céu são imagens que falam que o que está para ser inventado não está na terra, na água, no fogo, mas na nossa capacidade de imaginar para além dessas forças.
Por fim, Bachelard escolheu a imagem do nascer do Sol, tão utilizada pelos poetas para contemporizar, para aliviar, para harmonizar, mas em Nietzsche essa imagem ganha outro sentido. Para ele, o nascer do Sol não tem relação com a contemplação, mas com nossa capacidade de decisão. Desperta em nós a vontade de potência, quem sabe levantar-se como o Sol, de uma só flecha, saber lançar seu destino a cada dia para produzir e concretizar a imaginação no cotidiano. Nós podemos projetar de novo o mundo a partir dessa nossa coragem e vontade.
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A imagem do pico e do abismo fala da verticalidade que nos esquarteja. Diante de nós está sempre o alto e o baixo. Sempre está presente em nossa vida a esperança de subir e o medo de descer. O bem e o mal estão muito mais perto um do outro do que imaginamos. Capacitar-se para triunfar diante da vertigem implica a possibilidade de afirmar-se diante do mundo de um jeito novo.
Quantas vezes, ao cairmos, nos frustramos, nos decepcionamos em nossos processos educativos? Ficar no lamento nos faz cair de vez! É preciso descobrir, imaginar estratégias para escapar!
Que possamos viver essa condição: criaturas que habitam a Terra, os espaços concretos e materiais, mas que não desistam de sonhar, de desejar habitar também os espaços aéreos, mais leves, arejados e cheios de pessoas capazes de reparar nos pequenos detalhes que nos fazem sensíveis e criativos.
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Lúcia Schneider Hardt é formada em história pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, mestre em educação pela UFRGS (1995), doutora em educação pela UFRGS (2004). Professora adjunta da UFSC, atua na pedagogia com a disciplina de filosofia da educação. Na pós-graduação, ministra a disciplina de teorias da educação e seminário da linha de pesquisa Filosofia da Educação. Tem experiência na área de formação de professores e atuou por vários anos no ensino público e comunitário nos Estados do RS e SC. O projeto de pesquisa em desenvolvimento na universidade versa sobre o tema A genealogia de Nietzsche como método de pesquisa: a arte de ler nuances. Atua em projetos de extensão com o propósito de manter contato com as dinâmicas da escola e seus complexos desafios educacionais.