Irrompia a madrugada de segunda-feira, 4 de março, quando um tiro acertou a barriga de Vanilda Demboski Choseki, 45 anos. Mãe de Anselmo, 27, e Samuel, 21, ela tentava arrancar uma arma de caça das mãos do filho mais velho, que tirava satisfação do caçula, consumidor de crack.

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No coração dos Demboski, que vivem no Bairro Linha Batista, em Criciúma, Sul do Estado, cavou-se um rombo. Tornaram-se personagens de uma tragédia em família. Mãe sem filha, filha sem mãe, companheiro solitário, um irmão em lugar incerto, outro indiciado. Protagonistas de um drama sobre um palco íntimo, cenário habitual, espaço conhecido: a desgraça ocorreu em uma peça, espécie de edícula, nos fundos da casa da avó Tereza, 65, mãe de Vanilda.

Anselmo, caseiro em um sítio da região, tinha se mudado três dias antes para uma meia-água separada apenas por um muro da moradia de Tereza. Solteiro, queria ficar mais perto dos parentes. Do outro lado da rua sem calçadas, bem em frente, ficava a casa da mãe. Ela vivia com o companheiro Sidenei Santos Boeira, 41, com quem havia se unido 12 anos atrás. O casal criava o neto de quatro anos, filho de Mariéli, 26, a irmã do meio.

No entardecer de domingo, dia de eleições em Criciúma, parte dos Demboski tinha ido a uma festa na comunidade. Sidenei, que trabalharia na manhã seguinte, voltou cedo para a casa. Vanilda ficou um pouco mais. Depois da meia-noite, já em casa, ouviu a discussão entre os filhos. Anselmo percebeu que Samuel havia entrado em sua casa e levado R$ 200. A mãe assustou-se com o descontrole e gritos que, àquela altura, acordavam a vizinhança. Temendo o pior, correu em direção a eles e decidiu apartar a briga.

O fim da vida em 15 segundos

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Fisicamente mais frágil, agarrou-se na arma de Anselmo. Uma irmã de Vanilda ainda a puxou, a fim de que largasse a espingarda calibre 20, preparada para matar capivaras. Na casa da frente, a avó Tereza, que gritava por ajuda, ficou ainda mais desesperada quando ouviu o disparo:

– Meu Deus, o pior aconteceu – pressentiu a aposentada, ainda sem saber quem era a vítima.

Sidenei chegou logo em seguida. Mas nada mais podia ser feito pela companheira.

– O médico legista disse que ela morreu em 15 segundos – conta.

Atordoado, Sidenei colocou uma das mãos no ferimento. Com a outra, sentiu os batimentos do coração diminuírem. Ajudado por um amigo, colocou a mulher no carro e seguiu para o hospital. Enquanto isso, os dois irmãos desapareciam pelas ruas escuras do bairro.

Uma hora depois, Anselmo telefonou para Mariéli. Soube pelo celular que a mãe tinha morrido. Samuel, que também não esteve no velório e no enterro, foi informado por outro familiar. Ele mora com o pai, a 800 metros de onde tudo aconteceu. Trabalha como diarista na agricultura. Abandonou os estudos no 5º ano e, conforme familiares, teve contato com as drogas bem cedo, ainda na escola, experimentando primeiro a maconha.

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– A gente falava para o pai que tinha algo estranho. Mas só mais tarde, quando ele já não escondia, é que tivemos certeza – conta Mariéli.

O crack fragilizou o irmão mais novo

Para a irmã, que depois da separação de Vanilda com o primeiro marido ficou com o pai, o crack deixou Samuel mais frágil e sem noção das coisas.

– Apesar de usar drogas, Samuel sempre foi trabalhador e não se envolvia com violência. Mas agora pode estar enfraquecendo – reconhece.

A ideia de encaminhar o caçula para tratamento sempre foi discutida. Mas as iniciativas esbarravam na contrariedade do rapaz, que não se considerava dependente. Dizia trabalhar, ter controle sobre o uso, casa para morar e laços afetivos, o que o diferenciaria do perfil tradicional do usuário, que geralmente vive nas ruas e afastado da família. A irmã considera que, mesmo agora, neste momento difícil, sem a vontade dele, nada poderá ser feito.

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– Nem a reza e as correntes que a mãe fazia na igreja adiantaram- diz Mariéli.

A fé de Vanilda pode ser vista nos quadros com mensagens bíblicas espalhados pela casa. A vizinha e amiga Cibele Ismael lembra das manhãs em que escutava o rádio de Vanilda, na casa ao lado, sintonizado em programas religiosos. Ouvia a voz da vizinha e perguntava com quem ela falava.

– Estou falando com Deus, pedindo que ajude minha família – respondia Vanilda, esperançosa.

Perdão judicial não exclui a dor

Na tarde de terça-feira, antes de completar 48 horas da morte da mãe, Anselmo, o filho mais velho e dono da espingarda que tirou a vida de Vanilda, se apresentou ao delegado Márcio Campos Neves, titular da 1ª Delegacia de Proteção à Mulher, Criança, Adolescente e Idoso de Criciúma. Estava acompanhado de uma advogada. Réu primário, com residência e trabalho fixos, responderá em liberdade pelos crimes de homicídio culposo – quando não há intenção de matar – e porte ilegal de arma. O delegado aguarda por mais depoimentos e laudos do Instituto Geral de Perícias (IGP). Mas acredita que o disparo tenha sido acidental.

A arma, recolhida para a delegacia da Polícia Civil, não está com a numeração raspada, e foi encontrada também na terça-feira com a ajuda do próprio Anselmo. Tinha sido escondida por ele, em um matagal próximo da chácara onde trabalha.

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O rapaz contou ter se escondido por medo da reação de parentes e por ter ficado muito abalado ao saber que a mãe tinha morrido. Queria ter ido se despedir dela no enterro, mas temeu pela própria segurança. Explicou que tinha a espingarda como defesa, pois trabalhava no interior do município. Além disso, afirma que gosta de caçar.

Porte de arma deve pesar mais

O inquérito policial deve ser concluído dentro de alguns dias, segundo Márcio Campos Neves. Para o delegado, o porte ilegal de arma deve pesar mais do que a acusação de homicídio culposo. Se prevalecer o entendimento de que o tiro foi mesmo acidental, a Justiça poderá beneficiar Anselmo com o chamado perdão judicial.

Nesse caso, conforme o delegado, a punibilidade pode ser extinta, a critério da Justiça, pois as consequências da infração atingem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torna desnecessária.

O fato de saber que o tiro que matou a mãe foi acidental não exclui o sentimento de perda do filho. Nem as circunstâncias da tragédia: o crack, a espingarda, o tiro, a morte.

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