O crime organizado é perverso. Não só mata, mas faz calar. Arbitra silêncio naqueles que sobrevivem ao terror por ele espalhado. Por ironia, nos que mais deviam ter voz: os familiares das vítimas. Fragilizados pelas perdas, pais, irmãos e amigos hesitam falar a respeito. Sentem-se vulneráveis a novas investidas e descrentes de que algo mudará. Desconfiados de que alguma força de segurança seja capaz de fazer recuar a onda de violência que a maioria entende ser como a maré, oscilante, entre um tempo e outro.
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Compreensível que prefiram não se manifestar. A crueldade do crime organizado faz mais do que ceifar vidas. Os bandido esvaziam a vida dos parentes das vítimas. Aos que ficam, sobra a saudade do convívio e as lembranças dos sonhos compartilhados. Cicatrizes que não fecham com o contar das horas, dos dias ou meses. Tempo que, ao passar, assenta dúvidas. E a pior das certezas: nada trará aquela pessoa de volta.
– Um sentimento que só quem perde dessa forma sabe como é.
Esta é uma das declarações de um dos familiares da agente prisional Deise Fernanda Melo Pereira Alves, assassinada com um tiro no peito quando chegava em casa, por volta das 21h, na noite de 26 de outubro do ano passado.
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Deise estudava Direito e trabalhava na Consultoria Jurídica da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania. Era casada com Carlos Antônio Gonçalves Alves, na época diretor da Penitenciária de São Pedro de Alcântara, e que limitou uma série de regalias para lideranças da facção criminosa estruturada naquela cadeia.
O alvo seria o diretor, que estava fazendo um curso em Brasília. Deise voltava da aula e teve o carro inicialmente atingido por um tiro, que atravessou o vidro traseiro quando ela estacionava na garagem de casa, na Rua João Fernando Ferreira, Bairro Roçado, em São José.
Deise morreu no local. Mas ainda conseguiu disparar contra o seu algoz, Marciano Carvalho dos Santos, ferindo-lhe uma das pernas. No escuro da rua, que não tem saída, um carro esperava pelo bandido. Sairia em fuga. Apesar dos esforços de reanimação, os médicos socorristas não conseguiram salvar Deise. Ao todo foram nove os criminosos denunciados pelo Ministério Público de Santa Catarina, que estão presos e irão a julgamento. Alguns desses, considerados líderes da facção criminosa que deu a sentença de morte, foram transferidos para outros estados.
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Para a família de Deise, a face do bando que a matou não é só um braço da violência. Tem o DNA do terror. Quase seis meses depois, o estampido do tiro que surpreendeu quem estava dentro de casa e correu em seu socorro é permanente aos ouvidos.
– Foi aqui, bem aqui, que ela tombou.
Naquela noite de sexta-feira ainda não havia o portão com grades de ferro na garagem. Providência tomada para se sentirem mais seguros dentro da própria casa. Mas grades não são sinônimo de segurança. As pessoas que mataram Deise estavam atrás de grades.
::Dificuldade de retomar a rotina
Quase meio ano depois da primeira onda de ataques, ainda há vítimas que levam uma vida atormentada e custam a voltar a uma rotina normal. Motoristas de ônibus, cobradores, passageiros e até mesmo policiais na linha de frente do crime têm dificuldade em falar sobre o assunto, se isolam e preferem se calar diante das oportunidades. O Diário Catarinense entrou em contato com vários deles, na esperança de descobrir como estão hoje e como superaram o terror. As reações que a equipe encontrou, porém, eram quase sempre as mesmas: o silêncio.
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Diante da oportunidade de falar, a maioria preferia se calar. Alguns jamais conseguiram retomar ao trabalho, como o policial civil Gilmar Lopes da Silva, 53 anos, atingido por quatro tiros em janeiro enquanto ia entregar uma intimação na Vila União, no Norte da Ilha. Isolado, Gilmar não sabe se algum dia ainda retorna ao trabalho e nem sequer atende as ligações que recebe no celular – só o faz quando os números que despontam no visor são familiares, como o da delegada Ester Coelho.
Um cobrador e um motorista da empresa de ônibus Canasvieiras também não retornaram à rotina ainda. Outros, como o motorista da Jotur Antônio Almerindo Jorge, 47 anos, já sepultaram as lembranças. Como o dia em que esteve com uma arma apontada para a cabeça e implorou aos bandidos para o deixarem sair de um ônibus em chamas. Ele prefere não tocar nunca mais no assunto.
– Aquele dia vai ficar marcado para sempre. Quem não passou por isso de perto, fica apavorado com o que aconteceu, mas depois esquece. Mas quem esteve dentro do olho do furacão nunca mais vai ter tranquilidade na vida – relata um motorista da empresa Santa Terezinha, também prestes a desistir da profissão.
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