Que destino triste teve Vlad. O homem que sonhava em viajar para conhecer o mundo cruzou mais de 4 mil quilômetros para migrar do Haiti ao Brasil. Na manhã de quinta-feira, o imigrante que virou um filho catarinense foi sepultado, coincidentemente, a centímetros de distância de outro conterrâneo haitiano no Cemitério da Barra, em Balneário Camboriú.
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Terremotos. Miséria. Violência de gangues. Corrupção. Vladimy Marcellus, 34 anos, deixou mãe e irmãos na terra natal e desembarcou em Santa Catarina movido por um desejo quase coletivo de haitianos: escapar dessa série de castigos que atormenta o primeiro país independente da América Latina. Construía esse caminho na base do suor, do esforço. Palavras que viraram quase sinônimos de seu resiliente povo, por vezes ainda invisível apesar de ter começado a migrar para o Brasil há oito anos. Na semana passada, Vladimy, que escapou de todas aquelas mazelas da terra natal, viu a morte chegar com a rapidez de temporal, em um bueiro de Balneário Camboriú.
A morte de Vladimy foi causada pelas chuvas que castigaram cidades do Vale e do Litoral de Santa Catarina nas últimas duas semanas. No dia 11, ele tentava desobstruir uma tubulação durante a chuva para livrar de um alagamento a chácara em que trabalhava. Acabou sendo sugado pelo bueiro. O corpo só foi encontrado cinco dias depois, na noite de terça-feira, após um novo temporal. Estava preso a galhos em uma galeria do Rio Ariribá, a 500 metros de onde havia sumido, perto da badalada Praia Brava.
Vladimy trabalhava há cerca de um ano e meio na chácara de uma família na Avenida do Estado. Foi quando o destino mais lhe sorriu. O tempo acabou sendo suficiente para o haitiano virar uma espécie de filho catarinense. A eles, Vladimy era muito mais que o apelido pelo qual foi chamado na cidade depois de seu desaparecimento: Vladimy era só Vlad. O portão branco, hoje fechado, não condiz com a abertura com que os patrões acolheram o imigrante. Vlad fazia serviços comuns de caseiro como cuidar das plantas, da casa e tratar os cães. Mas as virtudes dele iam além. Falava cinco idiomas, gostava de ler, ajudar conterrâneos e aprender coisas novas, como tocar violão.
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— Quando sabia de uma vaga de emprego, ele sempre nos avisava pelo celular, tentava ajudar. Foi assim que até minha irmã conseguiu trabalho aqui — conta o amigo Mack Romain.
Silêncio e paciência, virtudes que nos livros Sêneca listou como armas contra injustiças – a exemplo dessas, que o destino apronta –, eram palavras constantes no vocabulário, na conduta e nos conselhos de Vlad voltados à família dos empregadores. Que destino triste teve Vlad. Prestativo, foi capaz de se arriscar para desentupir no meio do temporal o bueiro que alagava a propriedade. Mesmo tendo medo de água. Nesta hora, foi justamente a calma que Vlad invocou quando a chefe que lhe tratava como filho pediu que ele saísse da chuva.
— Paciência, só falta mais um pouco — disse, antes de lhe entregar a carteira e voltar ao serviço.
Dor na despedida dos amigos
Vlad teve que ser sepultado em Balneário Camboriú em vez da terra natal. O estado de decomposição do corpo forçou essa medida. O adeus teve cerca de 10 pessoas, palavras de um padre que comparou a trajetória do haitiano com a de Cristo e lágrimas sem fim de dona Neuza, sua “mãe” catarinense. Participaram alguns amigos haitianos da região e a família que o empregava. Abalados com a repercussão, ainda evitam falar sobre as lembranças e o assunto que trazem dor. Vlad agora descansa sob uma lápide simples. O nome e a data de morte gravados no cimento fresco. A gratidão e a promessa de que permanecerá para sempre nos corações de quem ficou estão estampadas em uma faixa na coroa de flores. Que destino triste teve Vlad.
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*Colaborou Felipe Carneiro.
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