*Por Roni Caryn Rabin
Entre março e abril deste ano, os adolescentes começaram a aparecer em massa nos consultórios médicos com bolhas roxas e vermelho vivo nos dedos dos pés e das mãos. Essa nova e inesperada característica da infecção pelo coronavírus fascinou o público e, de uma hora para a outra, fotos dos chamados “pés da Covid” coalharam as redes sociais.
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Só que praticamente todas as imagens mostravam lesões rosadas na pele branca. Embora as pessoas de cor estejam sendo afetadas desproporcionalmente pela pandemia, curiosamente a versão do fenômeno em pele escura era difícil de achar.
Na realidade, o problema não se limita ao “pé da Covid” ou às redes sociais; a dermatologia como um todo tem dificuldades com as peles parda e negra. Fez-se algum progresso de uns anos para cá, mas a maioria dos livros que servem de referência para o diagnóstico de doenças de pele não inclui fotos destas em pessoas de cor.
É uma omissão gritante que pode levar a diagnoses erradas e sofrimento desnecessário, já que, segundo os especialistas, as características principais dos problemas dermatológicos – como manchas vermelhas e bolhas arroxeadas – podem se revelar de forma bem diferente em pessoas de compleições diversas.
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“O reconhecimento de padrões é a base da dermatologia, e grande parte dele se resume a uma questão de treinamento do olho para reconhecer certos tons que o levam a pensar em determinadas doenças. Acontece que esses matizes são afetados por outro, aquele que o cerca, ou seja, na pele escura podem parecer diferentes. Se você for treinado para procurar algo de uma tonalidade só, não vai reconhecer se vir aquilo em outra amostragem”, explica a dra. Jenna Lester, diretora do programa de cores da pele da Universidade da Califórnia, em San Francisco.
A médica recentemente revisou 130 imagens dos efeitos do coronavírus na pele encontrados em publicações científicas e descobriu que a maioria absoluta era de pessoas brancas.
Com a disseminação do coronavírus, os dermatologistas criaram um registro internacional para catalogar exemplos de manifestações dermatológicas da Covid-19 – que compilou mais de 700 casos, mas no qual somente 34 são de pacientes hispânicos e 13 de negros.
Só em julho a dra. Roxana Daneshjou e seus colegas da Universidade Stanford publicaram algumas imagens de “pés da Covid” em pacientes não brancos no “The Journal of the American Academy of Dermatology”.
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“Sabemos que, se a pele escura não estiver bem representada nas imagens, não só os dermatologistas mas os médicos de outras especialidades terão menos condições de fazer um diagnóstico adequado”, afirma o dr. Hao Feng, professor assistente de Dermatologia da Universidade de Connecticut.
Recentemente, ele afirmou que omissões desse tipo são comuns nos livros técnicos, nos quais somente dez por cento das imagens ilustram doenças dermatológicas em pele escura. Quando há fotos de negros disponíveis, elas geralmente descrevem a sífilis. Ele descobriu que o recurso digital VisualDx tem um conjunto mais diversificado, mas, mesmo assim, não passa de 28,5 por cento em tons de pele escura.

“Ser especialista e não ter experiência com a doença em pessoas de cor é como um clínico geral não saber examinar os pulmões ou o coração”, diz o dr. Art Papier, dermatologista e um dos fundadores da VisualDx.
Isso porque todos os médicos observam a pele em busca de pistas para outros males. As mudanças no tecido podem ser a primeira indicação de problemas que põem a vida em risco, como sepse, celulite ou reações graves a algum medicamento.
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O estudo de Feng conclui que havia um número insuficiente de imagens de câncer em pele escura no material educacional examinado – ainda que a doença, embora menos comum, seja mais letal em pacientes negros e hispânicos, e geralmente diagnosticada em um estágio mais avançado. A taxa de sobrevida de cinco anos é de 66 por cento para os negros não hispânicos em relação a 90 por cento para os brancos não hispânicos.
No geral, os negros têm menos probabilidade que os brancos de consultar um dermatologista e menos ainda de fazer um exame para câncer de pele. E, mesmo quando procuram um especialista, segundo mostram os estudos, eles têm menos probabilidades que os brancos que sofrem do mesmo problema de receber indicação de certos tratamentos, como antibióticos orais para acne.
“Posso dizer, por experiência própria na clínica, que muita coisa passa batida porque o profissional não reconhece o processo da doença na pele mais escura”, diz Feng.
Até problemas relativamente comuns podem dificultar a vida do médico que nunca viu sua manifestação em pessoas de cor.
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Lester conta que quando ainda estava na faculdade um paciente chegou à clínica com uma irritação que deixava a pele levemente arroxeada. “Ninguém sabia o que era”, admite. Mas uma biópsia revelou que era uma doença tão comum que os médicos a diagnosticam na base do olho, sem a necessidade de exames ou procedimentos especiais: psoríase. Entretanto, é comum não ser identificada nem tratada entre as pessoas de cor.
“A literatura médica descreve os sinais como ‘manchas rosadas com escamas brancas prateadas’, mas não tem nada a ver com o que se vê na pele escura, que ganha tons arroxeados. Muitos pacientes meus usam muito hidratante quando a pele resseca, de modo que a escamação também não fica muito visível”, conta ela.
A aparência de muitas erupções cutâneas varia de acordo com as diferentes compleições. “O eczema, por exemplo, geralmente descrito como causador de vermelhões e coceira, nos negros causa pequenos calombos; já a pitiríase rósea é descrita como uma mancha maior com outras menores saindo dela, mas esse padrão não se aplica às pessoas de tez escura”, completa Lester.
O melanoma, variação mais grave do câncer de pele, nos negros se manifesta onde os médicos nem pensam em examinar: na palma das mãos e na sola dos pés.
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A palidez, que pode ser indicação tanto de anemia como de redução do fluxo sanguíneo e da oxigenação, tem outra aparência nos negros. “A cor muda, fica meio acinzentada, o que me faz pensar em George Floyd. Quando o vemos no chão, sua pele já é de um marrom acinzentado, mostrando a falta de oxigênio”, explica a dra. Lynn McKinley-Grant, professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade Howard e presidente da Sociedade da Cor da Pele, que promove a conscientização e a educação dessas variações.
Quando Tierra Styles, de 31 anos, natural de Auburn, na Geórgia, perguntou ao pediatra sobre a irritação que aparecera na nuca de seu filhinho, o médico disse que não era nada. Nas consultas posteriores, o diagnóstico foi primeiro de sarna e, depois, de eczema, mas as pomadas receitadas não surtiram efeito algum.
Por fim, Styles levou o garoto a uma dermatologista negra, que lhe disse que a mancha que deixava a pele áspera feito lixa era uma doença benigna chamada queratose pilar.
“Ela inclusive procurou uma internet uma foto para me mostrar, mas não achou nenhuma. Não havia uma única foto de um negro com aquele problema para eu ver”, conclui.
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