Eles se conheceram, e era bossa-nova. Céu azul-clarinho com finas nuvens de algodão. Um tropeço aqui e ali, uma palavra miúda em meio a gestos ensolarados; é verão. O que já havia sido de um, ou o passado do outro, não importava mais, instante raro aquele. Porque o encontro de corpos pode ser uma extensão do encontro de almas que já se sabem muito antes de se conhecerem. E eles se conheceram melhor, era sinfonia.

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Uma camerata tocava ao fundo quando passeavam de mãos dadas pelas ruas do centro da cidade. E os cafés, as livrarias, as lojas de discos chamavam mais atenção que os mendigos, os índios nas calçadas ou o barulho dos carros atravessando as faixas. Porque um havia cruzado a vida do outro e aquele era o ponto que levaria até não se sabe onde. E Vivaldi tinha tanto a ver com isso. E até Villa Lobos saberia decifrar sem dizer.

Os violinos e os pianos, as mãos e os lábios, tudo condensado no ato de se entregar sem certezas. Então se conheceram melhor, e era pop rock. Os beijos cada vez mais violentos, e o intenso desejo de entrar na vida do outro – mas tão dentro que já estavam! Uma noite de lua cheia e poucas estrelas calorosamente os recebia no mesmo trapiche à beira mar. Andavam soltos de mãos atadas, já não havia o silêncio; era MPB.

Um caminhando com as pernas do outro – os braços, o riso, o sopro de emoção que emanava das peles; um martírio bom. E a raiva às vezes era Caetano; e as carícias, então, Chico Buarque. Os dois entrelaçados no cotidiano do relacionamento que era uma teia tecida por duas aranhas. Eles se conheceram tanto, e era rock&roll. Um rolando sobre a cabeça do outro, e se abraçando – ou se apertando – buscavam não esperar por nada além da paz de tempos atrás, do sono romântico de corpos encaixados. Porque eles se conheciam demais, e amavam jazz: peitos debruçados sobre a embriaguez emocional de Chet Baker, vez em quando o suspiro triste e doce, meio Sarah Vaughan de ser.

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Trompetes e pianos, ah, quantos anos a costurar suas vidas! Eles se conheciam ao máximo – era anos 60 de novo – ao extremo de não precisarem de palavras e saberem-se atordoados com a briga, e fazerem as pazes acariciados pelos lábios quentes e reconfortantes um do outro. Ainda havia sonhos – ou quem sabe tenham renascido na esperança de se realizar – e planos doidos de paixão. Um dizia se sentir como o outro não sabia definir, totalmente Beatles – Oh, Eleanor Rigby! Amores precoces estudando possibilidades de um amanhecer mais seguro. Talvez se conheçam até hoje.

Quando brigam inconsequentes e agem hardcore. Ou quando assumem seus limites, e se tocam e se entregam, nesse samba-raiz de casal. Ou talvez nem se reconheçam agora, e se estranhem quando, totalmente soul, se olham no mesmo espelho.

Então talvez sofram blues, sorrindo às vezes axé, levando a vida tão reggae. Mas se amam a cada nota que sentem, no timbre um do outro se entendem; na melodia da vida a dois, compondo amanhãs.

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