Raul Caldas Filho é jornalista, cronista e ficcionista. É autor de 11 livros, entre eles, o romance A Ilha dos Ventos Volúveis, escolhido pela Academia Catarinense de Letras como um dos destaques literários de 2011. O conto aqui publicado é inédito.

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Paixão por Clarice

(…) É fácil me pintar: basta pôr maçãs salientes, olhos um pouco oblíquos e lábios cheios. Sou caricaturável.” (Clarice Lispector)

R.H. sentia um verdadeiro fascínio pelos escritos de Clarice Lispector. Lera quase todos os seus livros, sempre se inebriando com a magia de suas palavras e com o seu estilo inconfundível. E havia uma coincidência em suas vidas: R.H. nascera no mesmo dia, mês e ano em que ela morrera.

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Era fato notório que ela tinha sido uma bela mulher. Mas ele nunca prestou muita atenção ao seu aspecto físico, pois as suas fotos mais divulgadas revelavam uma Clarice madura e semblante sofrido. Até que R.H. adquiriu a obra Clarice Fotobiografia**, com fotos e imagens de toda a sua vida e carreira literária. E ele conheceu a deslumbrante Clarice moça, no auge de sua beleza e luminosidade.

A partir daí, estranhos fenômenos passaram a dominá-lo, como a torrente marinha que, pouco a pouco, vai cobrindo a areia de uma praia. Durante semanas, voltou a ler Perto do Coração Selvagem, escrito naquela época, redescobrindo-o em toda a sua criatividade e profundidade. Seduzido mais uma vez pelo estilo arrebatador, pelas metáforas instigantes e pela sensibilidade à flor da pele, indagava-se como uma jovem de apenas 21 anos já poderia possuir uma linguagem tão densa e madura. E só encontrou paralelo na genialidade juvenil de Rimbaud.

Depois, com uma incontida ânsia, retornava à Clarice daquele tempo, examinando-a nos seus mínimos detalhes, da face angulosa, emoldurada por longos cabelos compridos, soltos ou armados, na moda dos anos 1940, as formas esguias (nem as mãos e os dedos longos escapavam das perquirições), como se quisesse desvendar os seus mais íntimos segredos.

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Sim, ela possuía um corpo, matéria de carne e osso, palpável e sensual. Mas, ao mesmo tempo, também lhe parecia uma imagem inefável, ou uma esfinge, figura mitológica (“decifra-me ou te devoro!”), tantas vezes citada em seus textos. E esquecia-se das horas e dos afazeres na contemplação dos lábios carnudos e bem delineados (os superiores assemelhavam-se a duas montanhas), o nariz reto, as maçãs faciais proeminentes (uma espécie de marca registrada clariceana) e o olhar felino fixado em seu prório olhar (ou assim ele imaginava).

Mas o mais inquietante veio em seguida: R.H. começou a ter sonhos eróticos com Clarice e via-a, alta e desejável, sem nenhuma veste e, quando estava à sua frente, ele acordava-se, banhado em suor. Noutras ocasiões, com a mente ainda pairando no insondável mistério dos sonhos, acreditava que iria encontrá-la. Até que a crua realidade – qual um incômodo clarão -lhe despertava para mais um insatisfatóio hoje.

Então concluiu que havia se apaixonado por uma pessoa morta há mais de 30 anos, o que o levava a absurdas reflexões: “… por que não nasci na sua época, para conhecê-la viva e saudável?” Tentou reagir ao que já se transformara numa obsessão, deixando de ler os seus livros e procurando outros autores. Mas acabava retornando aos textos e… às fotos da mocidade de Clarice. E algo inacreditável invadiu-lhe a mente: passou a sentir ciúme do marido de Clarice, com quem ela se casou, no auge de sua beleza física, aos 22 anos, em 1943.

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Assim transcorriam os dias e as noites, sem que R.H. conseguisse tirar Clarice dos seus pensamentos, imaginando-a também como a rebelde Joana e a provocante Lídia, personagens-reflexos de si mesma, retratadas em Perto do Coração Selvagem.

A vida acontecia lá fora e ele não tomava mais conhecimento disso. Em mais uma tentativa de reação, aguçou os sentidos e ouviu o vento zunir e o barulho das ondas do mar explodindo na praia, enquanto aspirava ao aroma adocicado dos jasmineiros.

Resolveu sair. Ao entrar no banheiro para se barbear, viu uma barata. Num golpe só esmagou-a. E, sem pensar duas vezes, comeu a massa branca da barata morta. Foi a forma que encontrou para se libertar de Clarice.

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** Clarice Fotobiografia – Nádia Batella Gotlib (Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2ª edição, 2009.)