Estou morando na Barra da Lagoa, litoral leste da Ilha de Santa Catarina, desde o começo do outono, sabidamente a estação que mais ressalta as belezas naturais daqui. Aquela luminosidade espetacular incidindo sobre as paisagens dadivosas desse lugar: só entende quem vê. O paraíso.
Continua depois da publicidade
A Barra da Lagoa é, obviamente, onde a Lagoa encontra o mar. Onde o “manezês” de raiz encontra todas as línguas do mundo para um papo animado. Mas, no inverno, é onde o vento sul faz a curva, atravessa a tua alma, já encharcada pela chuva gelada: é um verdadeiro purgatório, climático e social.
Lavar a alma nem sempre é tarefa fácil e prazerosa. Confesso que vim pra cá em busca desse frio purgador, para reencontrar ideais de quase 40 anos de vida, tendo como companheiro apenas o mar da baixa estação. Um outro polo, solitário e necessário para quem (como eu) trabalha com o público, com eventos, o tempo todo.
Mas uma amiga já tinha me advertido: “Cuidado! A Barra da Lagoa, no inverno, é barra”. Falam de malfeitores, desocupados que habitam as desordenadas ruas e consomem drogas às portas dos pacatos moradores: a maioria pescadores, estudantes, backpackers.
De fato, tudo parece mais tenso no inverno da Barra da Lagoa. A polícia circula atenta. E os pacatos moradores te olham desconfiados e você se lembra daquele episódio em que eles assumiram o papel da polícia e expulsaram os traficantes locais. E você fica feliz por não ser um traficante. E fica feliz pela polícia fazer o papel da polícia. E os pacatos cidadãos poderem ser pacatos novamente.
Continua depois da publicidade
Isso para que todos nós, artistas em crise, pacatos cidadãos, pescadores, tainhas, polícia e malfeitores possamos lavar nossas almas e suportarmos a chuva fria, o vento sul, os dias tristes de inverno na Barra da Lagoa: o purgatório. E nos suportarmos também, sem nos matarmos, dividindo casas tão próximas, respirando o mesmo ar gelado.
Pois quando o sol voltar a brilhar, vai encontrar todos os sobreviventes da Barra revigorados e nos fazer perceber que estávamos o tempo todo no paraíso. Pois até o paraíso tem seus dias de melancolia cinza e chuvosa. São dias de limpeza. Pois, mesmo no paraíso, teremos que passar pela revista da polícia. E teremos que lidar com os malfeitores, às nossas portas, de ambos os lados do portão.
Queimaremos no sol do paraíso para purgarmos o 13º salário num engarrafamento infernal, já que “todo mundo quer ir pro céu (de carro popular), mas ninguém quer morrer”.
Viva a Barra da Lagoa! Purgatório dos pagãos! Paraíso da classe média! O inferno para toda e qualquer tainha, desgarrada ou em cardume.
Continua depois da publicidade
Paulo Vasilescu, ator e produtor cultural, é a personagem a.k.a zuleika zimbábue