Já virou moda: todo ano no São Paulo Fashion Week, um dos principais eventos fashionistas do mundo, acaba sendo reeditada a mesma polêmica em torno de um assunto que, digamos sem eufemismo, deixa explícito o imaginário racista brasileiro. Se o assunto é o mesmo, os termos da polêmica variam. Pelo menos desde 2007, quando foram realizados os primeiros protestos no Parque Ibirapuera, onde acontecia o SPFW (agora é no Parque Villa Lobos), reivindicando maior participação dos negros e negras nas passarelas brasileiras, a polêmica já ganhou alguns capítulos marcantes e controversos, e foi atualizada agora, na última segunda-feira, pelo desfile da Tufi Duek.
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O estilista da grife, Eduardo Pombal, diz que sua coleção foi inspirada “na riqueza cultural e ornamental da África”, assim como nas imagens do fotógrafo Malick Sidibé, que nasceu em Mali no ano de 1935 e fotografou “a cena popular africana na década de 1960”. Por sua vez, a polêmica nasceu porque a modelo mais negra do desfile de Pombal deve ter mais ou menos a coloração de pele da Patrícia Poeta, enquanto a mais branca é um pouco mais clarinha que a Xuxa, ou seja, uma cartela de cores que mirou na África e acertou na Suíça.
Sou um relativista radical e acredito que algumas vezes a cobrança exige de nós um pouco mais do que voluntarismo; exige algum entendimento. No começo do ano, por exemplo, coloquei-me contra os ataques ao desfile de Ronaldo Fraga, que, como se sabe, se apropriou do Bombril para compor o penteado de suas modelos, em grande parte negras, aliás. Acredito ainda que Fraga, ao tornar estético um objeto que muitas vezes foi usado para macular a imagem do negro, está justamente tentando dizer o contrário: “não temos problema em ser chamados de pixaim.” O estilista pode ter sido provocativo, talvez até mesmo ambíguo, mas dificilmente conduzido por um pensamento racista.
Já em 2011, com a coleção Royal Black, a grife carioca Osklen tematizou “a cultura afro-brasileira” e dessa vez a polêmica foi causada, curiosamente, pelo motivo oposto: o estilista Oskar Metsavaht queria contar com todas as 48 modelos negras e, segundo disse em uma entrevista, conseguiu apenas 12 – no caso com o perfil da grife, ou seja, “com altura, porte e preparo de passarela”. Seja como for, diante da escolha do tema e de acordo com o próprio estilista, naquele ano o número de pedidos de revendedores no Sul do país diminuiu consideravelmente.
Nos bastidores se diz, por exemplo, que nas reuniões das marcas do SPFW, quando o assunto das cotas para modelos negras entra em pauta, há quem pergunte: “Se os negros não compram minha roupa, por que vou contratar modelos negras?” De um determinado ponto de vista, vindo de onde vem, não deixa de ser uma pergunta legítima, mas ela nos dá o direito de perguntar também: se a modelo negra não interessa, por que o interesse em sua cultura? Criar um desfile sobre a África só com modelos brancas não seria como escalar o Lobão pra fazer um solo de cavaquinho?
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As opções do estilista da Tufi Duek, portanto, devem ser classificadas no mínimo como omissas. Além do mais, a coleção apresenta um erro de ordem poética, pois ignora que a roupa, afinal, e isso em todos os sentidos, não é outra coisa senão uma pele. E como falar da roupa e da cultura africanas sem fazer qualquer menção àquilo que lhe é mais caro, ou seja, a própria pele negra? Não acredito que um desfile sobre a África deva necessariamente, por obrigação, apresentar todas as modelos negras. Por outro lado, salta aos olhos que, sem qualquer tipo de justificativa, não tenha nenhuma.
Ou como resumiu Paulinho da Viola em dois versos de sua linda canção: “Tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim.”