*Com Gabriela Machado e Leandro Becker
"Não é uma fatalidade ou uma doença em que não se pode alterar o curso das coisas. É possível, com um sistema de prevenção e acolhimento dos casos de violência doméstica, reduzir significativamente os índices de feminicídio íntimo no Estado". É o que afirma o Tribunal de Contas de Santa Catarina (TCE/SC) em um relatório que traça o perfil dos casos registrados entre 2011 e 2018.
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Segundo o documento, diferentemente de outros atos contra a vida, este tem a característica de ser evitável. O relatório aponta que, entre os 353 casos no período, 70% das vítimas já tinham sofrido alguma agressão anterior.
Um dos casos acompanhados pela reportagem do Jornal do Almoço, que levou ao ar uma série especial ao longo desta semana sobre o assunto, é exemplo do quanto a vítima de violência fica exposta. Ao levar o filho para a creche, uma mulher foi agredida pelo ex-companheiro. Ela tentou correr em direção a uma base da Polícia Militar para se proteger, mas isso não intimidou o agressor, que a atingiu enquanto ela carregava o filho no colo.
Não havia policiais na base, e a viatura chegou 25 minutos depois de ter sido chamada. O criminoso já tinha fugido. A mulher foi levada para um hospital público, onde ficou por duas horas no corredor até ser atendida. Qualquer pessoa, se apresentando como parente dela, poderia entrar no local em que ela estava. Inclusive o agressor.
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É neste momento, logo após a ameaça ou a primeira agressão, que uma frente de trabalho precisa atuar para que o caso não acabe em feminicídio.
— A polícia atende, mas como fica a assessoria jurídica? Alguém orienta sobre a medida protetiva? — são questionamentos feitos pela presidente da comissão da Mulher Advogada da OAB de Santa Catarina, Rejane Silva Sánchez.
Ela explica que a primeira atitude que deve ser tomada pela vítima, além de acionar a Polícia Militar em caso de agressão, é procurar uma delegacia especializada, que dará o encaminhamento para que seja buscada judicialmente uma medida protetiva, que estabelecerá que o agressor fique distante da vítima.
Depois disso, é preciso que a medida seja fiscalizada. Isso depende da iniciativa da própria de mulher de denunciar caso o suspeito descumpra, mas também de uma rede de apoio eficiente no atendimento.
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— Tem algumas questões que precisam ser superadas, como por exemplo a ausência de delegacia para mulheres em todos os lugares, que atendam 24h. As vezes falta preparo desta rede de apoio, que não tem que se preocupar só com o crime e a punição, mas com a vítima, com o olhar que está se dando a ela — pontua a advogada, que reforça que a violência contra a mulher é uma questão complexa e precisa de envolvimento de diferentes frentes de trabalho.
É preciso assistência social, atendimento psicológico, muitas mulheres não conseguem se reintegrar ao convívio social", diz a advogada Rejane Silva Sánchez.
De acordo com o relatório do TCE, "a ausência de serviços públicos eficientes e de qualidade contribui para o aumento dos casos". O tribunal salienta que "a resposta inadequada dos órgãos públicos, seja em segurança pública, justiça ou assistência social, torna 'normal' a violência contra a mulher, sobretudo a que ocorre domesticamente".
Iniciativas em diferentes regiões do Estado
Medidas são tomadas em diferentes regiões do Estado, e por órgãos distintos, para tentar reduzir esta estatística. Em São José, foi criado o aplicativo de celular Concilia APP, no qual a mulher faz um teste para saber se corre risco. A ferramenta tem entre as funções identificar casos de violência previstos na Lei Maria da Penha. A iniciativa partiu da juíza Lilian Telles de Sá Vieira e dos servidores do Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica e Familiar da comarca.
— O aplicativo surgiu da necessidade de melhorarmos a nossa comunicação com a sociedade também na área da violência doméstica. Com a ferramenta, a usuária pode consultar o processo, realizar o teste da violência, acessar a rede de serviços da comarca e ter mais informações com os vídeos e áudios explicativos. O dispositivo faz a ponte com os conteúdos institucionais e multidisciplinares, sendo um instrumento para prevenir, conscientizar e buscar oportunidades de melhoria — afirmou a magistrada por meio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
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A prevenção também mira nos homens. O Tribunal começou a distribuir cartilhas voltadas a eles, na Capital, esclarecendo o que é o machismo e como leva à violência. Blumenau, Chapecó, Joaçaba, Lages, Balneário Camboriú, Floripa e Joinville estão criando grupos de discussão e reflexão com agressores com intermédio do TJSC. O Tribunal também treina professores para levar a discussão à sala de aula, com foco em crianças e adolescentes.
No ano passado, a Polícia Civil lançou o programa PC por Elas, um conjunto de ações que promove acolhimento e acompanhamento de mulheres em situação de vulnerabilidade social e que sofreram violência doméstica. O programa é levado a todas as regiões do Estado por meio das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI).
— Nós buscamos, por meio da escuta humanizada, o atendimento digno em um local adequado. Precisamos fazer com que a mulher rompa o silêncio e crie coragem para denunciar a violência que ela sofre e fazer esse enfrentamento, com grupos de mulheres — disse a delegada Patrícia Maria Zimmermann D´Ávila no lançamendo do projeto.
Segundo ela, haverá também a criação de grupos de conversa com homens agressores, visando espaço para reflexão e mudança comportamental. Além disso, ocorre o acompanhamento das vítimas e trabalho de orientação em escolas.
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As delegacias especializadas em 31 locais de Santa Catarina são o caminho para formalizar denúncias e conquistar medidas protetivas na Justiça que obrigam o agressor a ficar longe. Em 2019, na Capital, cem mulheres que não tinham como pagar advogado conseguiram medida protetiva ou processaram os agressores graças aos defensores públicos estaduais.
Em Lages, são emitidas em média cinco medidas protetivas por dia. Como ação complementar, a patrulha Maria da Penha, da Polícia Militar, sempre com uma policial feminina, pelo menos, faz visitas periódicas para monitorar se o agressor está cumprindo a decisão judicial. A ação é parte do trabalho da Rede Catarina, lançada em 2017 pela corporação.
— De acordo com o comando local de cada cidade é feita uma análise do tipo de crime e que iniciativas tomar. A Rede se baseia em três situações: ações protetivas, policiamento e soluções tecnológicas. Ela fiscaliza medidas protetivas, se estão sendo cumpridas — explica o major Mauro Almir Marzarotto Junior, chefe da seção da corporação da qual a iniciativa faz parte.
O resultado, além da prevenção, é a aproximação das vítimas e dos policiais e o estreitamento de uma relação de confiança:
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Com a rádio-patrulha Maria da Penha, por exemplo, se estabelece bastante vínculo, gera até relação de amizade. Isso com certeza colabora bastante com a redução de casos e com o aumento da notificação. Damos mais canais para que a mulher possa denunciar.
Em Chapecó, por meio da Rede Catarina, a PM criou uma linha direta para as mulheres pedirem ajuda por Whatsapp. O telefone disponível é o (49) 99990-2929. A cidade chegou a completar um ano sem registrar feminicídios em abril deste ano.

Outra iniciativa positiva e que agrega todas as ações que atuam nesta frente no Estado foi lançada pela Assembleia Legislativa: o Pacto Por elas. De acordo com a presidente da Comissão da Mulher da OAB, que se juntou ao pacto, o objetivo é interligar todas estas ações:
— A bancada feminina na Alesc percebeu que a gente tem uma série de ações que não estão se conversando. Agora teremos reuniões mensais em que será relatado o que tem sido feito e o que pode ser compartilhado. A ideia é estreitar relações entre as entidades para que a gente possa falar a mesma língua. Estes crimes crescem porque falta interligar essas ações de prevenção — avalia Rejane.
Leia também:
Como pedir ajuda: os serviços que atendem vítimas de violência doméstica em SC
Gerência da Mulher não tem orçamento
Embora haja ações e projetos como estes, o número de feminicídios tem subido no Estado. Nesta semana, o Estado chegou a 30 casos em 2019. Em todo o ano passado, foram 42. Pela Lei Maria da Penha, órgãos estaduais devem analisar os casos e elaborar as ações de prevenção juntos. Articular este plano é uma das funções da Gerência Estadual da Mulher.
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O setor que estrutura ações sobre um dos maiores desafios da segurança pública do Estado cabe numa sala. No dia em que a reportagem do JA foi até lá, três pessoas trabalhavam. Para Aretusa Larroyd, gerente da Mulher de SC, é preciso "buscar mais":
— Qualquer campanha, qualquer movimento, qualquer política voltada a qualquer causa pública requer recursos financeiros — ela pondera.
A Gerência da Mulher não tem orçamento para este ano. O governo informou que ele está sendo elaborado, e que o dinheiro está distribuído pelas secretarias e órgãos que desenvolvem ações nesta área. Quais são os órgãos e os valores investidos nesta política não foram informados.
"Com a recente criação da Gerência de Políticas para Mulheres e Direitos Humanos, a partir da reforma administrativa do Governo do Estado, o orçamento está sendo elaborado por meio do Plano Plurianual (PPA) com discussões periódicas, inclusive com a participação dos conselhos de direitos. As atribuições da gerência incluem o desenvolvimento de políticas públicas de igualdade de gênero e proteção dos direitos humanos que promovam a cidadania feminina. Além de assessorar, assistir, apoiar, articular e acompanhar ações, programas e projetos voltados à mulher", explicou o governo, em nota.
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A gerente afirma que, neste momento, o foco é engajar os municípios. Das 295 cidades de Santa Catarina, só 39 têm um conselho ou grupo formal na prefeitura voltado pra mulher. Ela também diz que algumas secretarias de governo estão se reunindo pra debater este assunto. Mas o plano estadual de políticas pras mulheres, envolvendo mais órgãos e mais abrangente, ainda não existe.
Segundo o relatório do TCE, "ainda são recorrentes no país os casos em que o assassinato por parceiro ou ex são apresentados em torno da narrativa de ato isolado, apenas um momento de descontrole ou intensa emoção, em que se apontam para o comportamento da vítima como 'justificativa' para a ocorrência do crime, não evidenciando o homicida como o verdadeiro responsável pela atrocidade". Para evitar estes crimes, ao concluir o relatório, o TCE sugere 10 medidas que devem ser tomadas pelo poder público.
A gente espera que no curto e médio prazo sejam feitas políticas que melhorem atendimento e prevenção, e que no longo prazo mulheres de Santa Catarina vivam sem medo de sair na rua", diz Antônio Felipe de Oliveira, auditor fiscal do TCE responsável pelo relatório.
10 propostas para redução do feminicídio
– Fortalecimento da vigilância e prevenção à violência contra a mulher: Medidas protetivas como o “Botão do Pânico”, implementado no Espírito Santo, devem ser realizadas no Estado. Segundo a Rede Catarina, em breve será lançado o aplicativo PMSC Cidadão, que contará com algumas funcionalidades, como o botão.
– Campanha publicitária de combate ao feminicídio íntimo: Divulgação de uma campanha para redução da violência doméstica e do feminicídio, disseminando os serviços públicos disponíveis para a proteção das vítimas.
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– Aplicação do Projeto de Lei 065.7/2018, de Prevenção da Violência Doméstica: tem como suas diretrizes prevenir a violência, divulgar ações de proteção e acolher as vítimas, inclusive crianças. É prevista a execução de ações como visitas periódicas pelos Agentes Comunitários de Saúde nos domicílios de risco e realização de estudos que auxiliem no aperfeiçoamento das políticas. O projeto ainda incentiva a elaboração de convênios com outras entidades e o uso dos recursos estaduais alocados na saúde para a prevenção de violência doméstica. De autoria de Ana Paula Lima (PT), foi aprovado no ano passado.
– Capacitação dos profissionais de saúde e assistência social: Propõe-se a criação de uma Escala de Avaliação do Perigo de Feminicídio, na qual o profissional avalia especificamente o risco da mulher que procura um serviço de saúde ou assistência social tem de ser assassinada pelo parceiro.
– Capacitação dos profissionais de polícia e justiça: Eles necessitam extrair as informações mais relevantes no inquérito. Além disso, cabe à Justiça prestar apoio às crianças afetadas por violência e feminicídio, de modo a reduzir este trauma na geração futura.
– Controle de armas em domicílios: Estudo realizado nos Estados Unidos analisado pelo TCE apresenta uma consistente relação entre posse de armas, particularmente pistolas, e taxa de feminicídio doméstico. Recomenda-se a aplicação rigorosa do Art. 22, inciso primeiro, da Lei Maria da Penha, que estabelece que o juiz poderá suspender ou restringir o porte de armas do agressor.
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– Acompanhamento dos agressores e vítimas de violência doméstica: Delegacias das Mulheres em Santa Catarina têm realizado um trabalho de terapia e acompanhamento das vítimas de violência doméstica. Esta atividade deve ser aprimorada e estendida para as regiões com maior incidência de casos.
– Convênio de cooperação com universidades: Professores e alunos em formação, principalmente da área de psicologia, podem atuar juntos às vítimas de violência doméstica em grupos terapêuticos, auxiliando que essas mulheres possam retomar as suas vidas à normalidade. Igualmente devem ser feitos grupos de terapia com agressores, de modo que o crime de feminicídio íntimo possa ser evitado.
– Registros fiéis, publicação mensal dos dados e cooperação entre os órgãos envolvidos com violência doméstica: O Estado deve priorizar um sistemático registro e publicação dos dados sobre violência doméstica, incluindo informações estatísticas sobre vítimas e autores. Estudo realizado sobre os sistemas de informação de homicídios identificou a carência de comunicação e a baixa conectividade entre as organizações responsáveis (saúde e segurança pública) como fatores limitantes para o sistema de prevenção.
– Avaliação das políticas públicas de prevenção: Estudos periódicos das políticas públicas adotadas para a prevenção da ocorrência de feminicídio devem ser feitas de modo a verificar aquelas que são mais bem-sucedidas e aumentar a escala do seu uso pelo Estado.
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Fonte: TCE/SC
Nossa Voz Por Elas

O Jornal do Almoço, da NSC TV, lançou o projeto Nossa Voz Por Elas: um concurso de música para estudantes das redes pública e privada da Grande Florianópolis. O tema é um desafio para Santa Catarina: o combate à violência contra a mulher. A ideia é incentivar a discussão deste importante tema entre adolescentes nas escola.
Os participantes devem compor na escola uma música com esta temática e enviar para o JA (a letra e um vídeo de até 1 minuto da música) por meio do e-mail nossavozporelas@somosnsc.com.br até o dia 9 de agosto. Uma comissão julgadora vai selecionar dois finalistas que irão para votação do público no G1 Santa Catarina. A música campeã será revelada no JA do dia 23 de agosto. Após a decisão, os estudantes compositores da música campeã vão gravar a composição em estúdio. Confira o regulamento.