Em 15 de julho de 1976, Gilberto Gil foi condenado, em Florianópolis, a um ano de prisão por porte de maconha. A história é tão famosa quanto infame: já naquela época, em pleno período de ditadura militar, a prisão foi mal vista na cidade, e criou um clima desfavorável no cenário cultural brasileiro. Gal Costa e Maria Bethânia, que faziam parte do supergrupo Doces Bárbaros com Gil e Caetano Veloso, chegaram a jurar um boicote a Florianópolis – e até mesmo outros músicos, como Rita Lee e Ney Matogrosso, cancelaram os shows que tinham marcados na cidade naquele mesmo ano.
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Com o passar do tempo, o episódio passou a parecer mais e mais absurdo – a ponto de hoje, 45 anos depois, soar completamente despropositado. Mas o que se alterou nessas quatro décadas e meia? Como o modo como o grande público encara a maconha mudou – se é que mudou? Será que Gilberto Gil seria preso caso aquele “flagrante” acontecesse em 2021?
– Na década de 1970, havia um conflito muito intenso entre a política de proibição das drogas e a efervescência do que hoje chamamos de contracultura – aponta Tarso Araújo, diretor executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides. – Havia uma tensão social entre os que defendiam que a maconha devia ser banida do planeta e os que achavam que ela, assim como outras drogas, representava um ato de liberdade individual; que era, em si, um assunto muito discutido em uma época em que pessoas estavam sendo obrigadas a ir lutar em guerras que consideravam erradas, por exemplo.
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Jornalista, Tarso pesquisa e escreve sobre cannabis, maconha medicinal e política sobre drogas há mais de uma década. Vencedor de diversos prêmios, ele se tornou uma das vozes mais importantes do Brasil na defesa da regulamentação da maconha medicinal; principalmente depois do lançamento do documentário Ilegal.
– É importante destacar que a perseguição à maconha foi uma produção do campo simbólico: não se trata do que a maconha é ou do que a maconha causa no organismo; se trata do que a maconha simboliza – ele prossegue. – Na época, simbolizava transgressão, contracultura, desobediência civil… Uma série de coisas que se queria reprimir intensamente. Não por acaso o Gilberto Gil fumava maconha: ele também representava tudo isso. Era um transgressor que fazia músicas de protesto contra a ditadura. Ele próprio representava todas as coisas que a guerra às drogas buscava atacar.
O curioso é que, conforme os jornalistas Fábio Bianchini e Marcos Espíndola escreveram em uma extensa matéria sobre a prisão de Gilberto Gil para a extinta revista Bizz em 2006, em 1976 os Doces Bárbaros já eram músicos maduros, nomes respeitados na MPB – todos já haviam passado dos 30 anos de idade. Mas “as maluquices da política e da cultura pop brasileira davam ao encontro a função de símbolo da contracultura, principalmente em cidades afastadas do eixo Rio-São Paulo-Salvador”, observa a reportagem. E esse símbolo, ao que tudo indica, incomodava figuras como Elói Gonçalves de Azevedo, delegado da Divisão de Tóxicos que se gabava do apelido de “terror dos maconheiros”. Foram ele e sua equipe que foram bater à porta do quarto de hotel dos músicos e revistar tudo à procura de drogas.

– A visão que se construiu ao longo do século XX resultou em décadas de figuras como políticos, delegados, pais de família que se colocavam intencionalmente como “durões” contra as drogas, como radicalmente contra as drogas – analisa Tarso Araújo. – Isso era sinal de prestígio, de correção moral; e sinônimo de votos para políticos.
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Uma história milenar
Para comentar o contexto em que a prisão de Gilberto Gil em Floripa esteve inserida, Tarso Araújo dá um passo atrás – um passo de alguns milhares de anos. E lembra, antes de tudo, que cannabis e maconha não são a mesma coisa: a Cannabis sativa é uma espécie de planta com milhares de variedades documentadas; algumas das quais produzem flores com alto teor da substância psicoativa THC. O que costuma-se chamar de “maconha” não é a planta; são as flores das plantas fêmeas de variedades específicas de Cannabis sativa ricas em THC, e o preparado que se faz para se usar, normalmente, com efeito psicoativo.
– A cannabis é uma planta com diversos usos, que acompanha a humanidade há pelo menos dez mil anos – afirma Tarso. – Ao longo desse tempo, a humanidade conviveu com ela de uma maneira amistosa e prática. Fibras de cannabis eram usadas para fazer cordas e roupas desde antes do surgimento da agricultura. Há pelo menos três mil anos, a humanidade também usa produtos da cannabis como alimento e como remédio. Economicamente e estrategicamente, o comércio dos produtos da cannabis foi fundamental em vários momentos históricos.
– Essa relação da humanidade com a cannabis mudou nos últimos cem anos – ele continua. – Essa visão da maconha como uma coisa “do mal” é algo muito recente. Nos primeiros anos do século XX, começa a haver um processo global de proibição de algumas drogas, que se intensifica a partir dos anos 1930. Em 1961, a ONU cria a primeira das chamadas “Convenções Internacionais de Drogas”. A maconha já era proibida no Brasil, mas nesse ponto a proibição se torna global. Em 1971, o presidente norte-americano Richard Nixon declara, com essas palavras, uma “guerra às drogas”. É uma abordagem mais militarizada da repressão ao uso, que se tornou padrão.
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Foi, portanto, muito mais por uma questão cultural e simbólica que a maconha passou a representar perigo: no Brasil, ela ficou conhecida como “a erva do Diabo”.
– Difundiu-se também uma teoria de que a maconha tornava as pessoas violentas e as fazia cometer crimes – lembra Tarso. – Até os anos 1980, nos Estados Unidos, havia fontes oficiais afirmando que fumar maconha destrói neurônios; e isso não estava provado. Não estava provado que ela fazia qualquer mal para a saúde; não tinha a ver com questões científicas. Era uma proibição moral, muito associada a discriminações sociais e raciais: nos Estados Unidos, era uma droga de mexicanos; no Brasil, de pretos e pobres.
Mudança de mentalidade
Segundo Tarso Araújo, um dos acontecimentos que mais contribuiu para começar a alterar a visão que se tem, publicamente e coletivamente, da maconha, foi a legalização, via plebiscito, do seu uso medicinal; na Califórnia, em 1995. Foi a primeira vez no século XX que uma jurisdição criou um mecanismo legal de uso da maconha com fins medicinais; resgatando uma cultura médica do final do século XIX – época em que ainda se receitava maconha como remédio.
– Isso havia sido totalmente enterrado pelo discurso proibicionista do último século – diz o jornalista. – Mas a legalização na Califórnia fez as pessoas verem que aquela coisa que teoricamente, até ali, só podia causar mal, podia sim causar bem. O vovô que passou a vida dizendo que a maconha fazia mal começou a usar a planta para tratar o câncer. Isso deu um nó na cabeça das pessoas.
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Aqui no Brasil, o próprio lançamento do documentário Ilegal foi, como diz Tarso, um “peteleco” que fez com que o público começasse a ver um outro lado da maconha: a partir dele, as pessoas começaram a militar pela regulamentação do uso medicinal da planta. O assunto, antes tabu, virou pauta.
– Aí você começa a ver uma série de coisas que mudam na esteira disso: hoje em dia, o discurso do político durão contra as drogas não é necessariamente garantia de votos – ele exemplifica. – Hoje nós temos diversos políticos no Congresso brasileiro super empenhados em regulamentar o uso medicinal, ou mesmo industrial, da maconha. O [ex-presidente norte-americano Barack] Obama, antes de sua primeira eleição, não teve vergonha de dizer que fumou maconha na adolescência, e foi eleito mesmo assim. Ou seja, na sociedade norte-americana, a visão da maconha como uma “coisa do demo” já era fraca o suficiente para que ninguém deixasse de votar em um candidato porque ele admitiu já ter fumado.
Outros exemplos são as marchas da maconha, que começaram a acontecer no Brasil nos anos 2000, ganhando força ao fim da década; e o surgimento do Growroom, maior fórum de cultivo de cannabis no Brasil.
– Como você pode imaginar, o fórum era uma coisa super secreta: se é pego cultivando, você é automaticamente preso por tráfico, porque a polícia sempre supõe que o cultivo é feito para vender – conta Tarso. – Para se ter uma ideia, o lema do Growroom era: “o segredo do negócio é o segredo”. Foi no seio desse fórum que se organizou politicamente a marcha da maconha. Foi um motor muito importante para a mudança de mentalidade no Brasil.
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No final dos anos 2000, a polícia reprimiu duramente uma das marchas da maconha em São Paulo (SP); os participantes foram à justiça; e o Supremo Tribunal Federal decidiu que a marcha tinha sim o direito de acontecer, porque as pessoas estavam exercendo seu direito de liberdade de expressão. Isso foi, nas palavras de Tarso, um divisor de águas nos debates sobre o assunto no Brasil.
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Prisão-espetáculo
Se hoje artistas falam sem pudores sobre o consumo de cannabis (seja para fins medicinais ou recreativos), nos anos 1970 o “flagrante” de um músico com um baseado dava muito o que falar: a pequena sala de audiência do Fórum em Florianópolis ficou lotada de espectadores já nas primeiras audiências de Gilberto Gil em 1976. Autoridades, fãs e jornalistas se misturavam no Tribunal, junto da equipe do cineasta Jom Tob Azulay, que na época produzia um documentário sobre a turnê dos Doces Bárbaros. Os vídeos mostrando um Gil tranquilo e eloquente circulam hoje pelo YouTube.
Na ocasião, o que levou o artista a julgamento foi um único baseado, além de erva suficiente para mais dois (Caetano Veloso também foi revistado, mas a polícia não encontrou nada além de algumas pílulas para dormir, com a receita médica). Na época, a legislação penal não previa a figura do usuário de maconha: ou a pessoa era considerada traficante e estaria sujeita à prisão, além de multa; ou assumia a condição de viciado. Gilberto Gil (e também o baterista Francisco Edmundo de Azevedo, conhecido como Chiquinho, no quarto do qual a polícia encontrou 15 baseados) se declarou como viciado e foi condenado a um ano de prisão; pena substituída pelo juiz por uma internação em hospital psiquiátrico.
Gilberto Gil e Chiquinho foram transferidos da Casa de Saúde São Sebastião para o Instituto São José, na área metropolitana de Florianópolis. Lá, Gil teve contato com fãs que entrariam para toda esta história de um jeito curioso: uma delas, por exemplo, era Ana Maria Bessa, que mais tarde foi comparada a “uma cigana da ilha” na letra de Sandra, gravada em Refavela (1977). Políticos e autoridades também visitavam o músico no hospital; inclusive o então prefeito nomeado de Florianópolis, Esperidião Amin – que desagradou os militares por mostrar solidariedade ao aprisionado. Quatro dias depois, Gil e Chiquinho foram transferidos para a Clínica Psiquiátrica Botafogo, no Rio de Janeiro (RJ).
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Na matéria escrita por Fábio Bianchini e Marcos Espíndola, o promotor do caso, Valdemiro Borini, lembra que, se as prisões tivessem ocorrido no final daquele mesmo ano, Gil e Chiquinho sequer teriam passado mais de uma noite na cadeia: a Lei Antitóxicos, que entrou em vigor ainda em 1976, reconhecia a figura do usuário, com previsão de pena mais branda.
Em 2006, o porte de maconha para uso pessoal foi descriminalizado no Brasil – ou seja, não é crime e não acarreta prisão ou reclusão para os usuários (embora o uso compartilhado continue sendo crime). Por lei, quem é pego com pequenas quantidades de maconha é levado à delegacia e a um juiz, que pode punir o usuário com medidas como prestação de serviços à comunidade. Não, há, porém, clareza em relação à quantidade que define quem é usuário e quem é traficante – e usuários podem acabar sendo presos como traficantes, até mesmo por critérios preconceituosos e racistas.
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A maconha medicinal
Em junho deste ano, uma comissão especial da Câmara dos Deputados analisou o Projeto de Lei 399/15 e aprovou o texto-base da proposta, que é favorável à legalização do cultivo da cannabis para fins medicinais no Brasil. A ideia é que o plantio seja regularizado também para fins veterinários, científicos e industriais. Antes de uma eventual legalização, é claro, o projeto precisa passar por votação no plenário da Câmara e análise pelo Senado, além de sanção do Presidente da República.

Mas Tarso Araújo, da Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides, vê uma definitiva evolução na maneira como a política brasileira trata o assunto – e cita o exemplo do deputado Eduardo Costa, do Pará, que foi contra a postura adotada por seu partido, o PTB; e, mesmo ameaçado de expulsão pelo líder do partido Roberto Jefferson (que descreveu a posição de Costa e outros deputados como “a favor das drogas”), votou a favor do PL (que, aliás, não permite a produção de maconha para uso social ou recreativo). Em Florianópolis, inclusive, há um Projeto de Lei que tramita na Câmara de Vereadores e pode fazer da cidade uma das primeiras do Brasil a regulamentar a distribuição de cannabis medicinal na rede pública.
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Alguns remédios feitos a partir da cannabis já são autorizados no Brasil pela Anvisa. O modo mais comum de adquirir os produtos é por meio da importação: o paciente precisa preencher seus dados no site do governo, anexar documentação e receita médica, e esperar a autorização da Anvisa. Uma vez recebida, a autorização é enviada pelo correio à empresa fabricante, junto com a receita médica; e o recebimento do produto também acontece via correio. Há apenas um produto à base de cannabis disponível nas farmácias hoje; mas ele ainda é caro: a importação acaba sendo a via mais barata.
– Cerca de 20 mil pacientes no Brasil obtêm cannabis medicinal hoje por meio da importação – diz Tarso. – Estima-se que até o final do ano haverá mais dois produtos disponíveis nas farmácias; e, até o meio do ano que vem, estima-se que teremos entre cinco e dez produtos à venda. Isso deve fazer o preço cair.
Tarso Araújo argumenta que, quando se fala em cannabis medicinal, a discussão deixa de ser sobre liberdade individual, e se torna uma questão de direito constitucional.
– A constituição brasileira diz que a saúde é direito de todos – aponta. – Quando você mostra uma criança que costuma ter 80 convulsões por dia e, ao tomar óleo de cannabis, tem essas convulsões zeradas, começa a ficar difícil se colocar contra isso.
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