“Eu sou um eterno otimista em relação à vida nas cidades”, disse Jaime Lerner em entrevista à Revista Projeto. Ainda que captasse a realidade de carências e deficiências do espaço urbano, desafiando a maré derrotista, defendeu que “a cidade tem que ser encarada com a vontade de mudar sempre para melhor. Inovar [em uma cidade] é começar, não é ter todas as respostas antes”. Eleito o segundo urbanista mais importante de todos os tempos pela Planetizen, em 2018, e um dos pensadores mais influentes do mundo pela Time Magazine, em 2010, o arquiteto paranaense é um dos principais nomes quando se fala em inovação urbana ao redor do mundo.
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Com seus projetos e sua visão no planejamento urbano, transformou sua cidade natal, Curitiba, em um laboratório de experimentação de soluções urbanas inovadoras e, como consequência, em um modelo internacional que inspirou urbanistas, acadêmicos e políticos. Lerner desenvolveu iniciativas bem-sucedidas do meio ambiente à habitação, das quais o sistema de transporte, replicado em centenas de cidades, como Bogotá, Brisbane e Joanesburgo, talvez tenha se tornado uma das mais celebradas. O urbanista foi pioneiro, ainda, ao tornar a principal rua do centro em um corredor de pedestres, quatro décadas atrás, desafiando as convenções da época.
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Foram os projetos na capital paranaense, onde também foi prefeito por três vezes, que deram projeção ao seu trabalho; no entanto, ao longo de sua carreira, Lerner atuou em projetos de inúmeras outras cidades, como Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Caracas, Santos, Shangai, Havana, Seul, Porto Belo e, mais recentemente, Balneário Camboriú. Lerner também foi consultor de assuntos urbanos para as Nações Unidas.
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Ainda que percebesse boa parte das pessoas como pessimistas em relação às cidades, viveu com uma disposição apaixonada para imaginar e criar soluções ou alternativas que mudassem esse paradigma. Nesta semana, em seu adeus ao urbanista, na Curbed, Alissa Walker escreveu: “Lerner teve as ideias de que precisávamos – antes mesmo de percebermos que precisávamos delas”. Aos 83 anos, ainda em atividade, Jaime Lerner faleceu em Curitiba. Sua morte ocorreu apenas quatro dias após a de outro premiado arquiteto brasileiro, Paulo Mendes da Rocha, 92, vencedor do Prêmio Pritzker de 2006.
‘Morar, trabalhar e se divertir’
Jaime Lerner foi um defensor do uso misto dos espaços, da diversidade e da integração. Para ele, o que torna a cidade agradável é a conjugação das funções: trabalho, moradia e lazer. A divisão dos bairros por função ou por renda se torna uma inimiga da qualidade de vida, a qual interessa à população, por isso é necessário pensar e planejar o espaço urbano com vistas à integração e a melhoria da convivência humana na cidade. A boa convivência requer proximidade, não afastamento. “O que defendo são as coisas juntas: moradia, trabalho, lazer e mobilidade. Não é apostar no automóvel, na performance ou na tecnologia, mas na relação das pessoas com a cidade”, disse à Folha Pernambuco.
Para o urbanista, a cidade desejável é como um casco de tartaruga: possui o desenho de uma tessitura urbana e não deve ser partido. Estrategicamente, a tartaruga se movimenta e age apenas dentro de seu casco, a sua casa. Assim, densidade, acessibilidade e áreas verdes também se tornam ponto fundamentais, mas tudo depende de um bom sistema de mobilidade que conecte a tudo e a todos.
Nessa visão, é um erro incentivar o carro como o modal principal da população. O protagonismo do automóvel nas cidades e as consequências de sua presença excessiva, como a realização de obras viárias faraônicas, potencializaram a separação da moradia, do trabalho e do lazer. A mobilidade coletiva é uma necessidade, assim como sistemas alternativos, leves e baratos, sempre priorizando os pedestres. É preciso planejá-la, não isoladamente, mas considerando as demais funções da cidade, de forma holística.
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Inovação urbana
Atualmente, quando se fala em inovação urbana, é comum associar o tema à tecnologia, devido ao progresso nessa área e à sua relação com as mudanças nas cidades. Entretanto, para o arquiteto, a inovação fundamental nesse cenário não depende de tecnologia. A inovação está ligada à concepção da cidade e aos fatores que geram qualidade de vida e melhoria constante para a população.
Não é necessário ter todas as respostas no início, pois muitas coisas são aprendidas apenas no caminho, e é importante ter humildade para compreender e aceitar a impossibilidade de se resolver tudo ao mesmo tempo. A imperfeição faz parte da trajetória urbana. “Não adianta inventar adjetivos – cidades ‘inteligentes’, cidades ‘resilientes’. Ou a cidade faz cidade, ou não faz.” A transformação começa simplesmente com uma ideia ou proposta “da sociedade civil, da área técnica, ou da área política”, disse ao ArqFuturo.
A inovação pode usar recursos para acelerar o alcance de seus resultados, inclusive os tecnológicos, desde que passem por uma escolha criteriosa e que beneficiem a maioria da população, e não apenas uma faixa dela. Ela se baseia numa estratégia comum, num sonho coletivo para cidade. Por isso a inovação deve ser constante e, também, “constantemente checada com a população”, disse à Revista Projeto. Correções e mudanças de rota podem acontecer. Entretanto, é necessário que a grande maioria entenda a ideia ou proposta como desejável e, do contrário, ajude a modificá-la.
Em entrevista publicada no Congresso em Foco, Lerner foi enfático sobre esses pontos: “insisto que toda cidade, qualquer que seja o seu tamanho, pode promover transformações positivas em quatro anos ou menos. Tanto através da construção de uma visão estratégica de como e para onde crescer e qual é o negócio da cidade, como da implantação imediata de acupunturas urbanas, intervenções pontuais que geram novas energias nas comunidades”.
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A acupuntura urbana, como uma metáfora da prática milenar chinesa, é tema central de uma de suas obras literárias. Pautada na transformação da cidade por meio de intervenções estratégicas, pontuais e, talvez, pequenas, ela pode ‘curar’ o espaço urbano e trazer mais qualidade de vida ao cidadão. Jaime Lerner, um eterno otimista, provou com seu legado que o desejo de mudança, mesmo quando aplicado em projetos de pequena escala, pode causar grande impacto.
*Por Ágatha Depiné
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