O destino entrelaçou as histórias de Carlos Moisés da Silva e de Daniela Reinehr, mas nunca os uniu verdadeiramente. O bombeiro aposentado e a ex-policial foram escolhidos de última hora, em 2018, para formar uma improvisada chapa de candidatos a governador e a vice-governadora que nem mesmo o PSL acreditava que pudesse vencer. O resto é história.

Continua depois da publicidade

Eleitos a reboque da onda que fez de Jair Bolsonaro (na época no PSL) o candidato a presidente mais votado da história de Santa Catarina, logo ficou claro que não havia afinidade, diálogo, empatia entre Moisés e Daniela. Quando o distanciamento do governador em relação a Bolsonaro, a pandemia do coronavírus e a crise dos respiradores fantasmas tornaram o governador frágil, logo ela quis mostrar-se como opção. E ele, claro, não gostou.

O auge dessa disputa interna havia sido a formação do primeiro Tribunal do Impeachment, quando a Assembleia Legislativa patrocinou uma tentativa de se livrar de ambos e assumir o poder com o então presidente do parlamento estadual, Júlio Garcia (PSD). O prato feito foi rejeitado pela maioria dos desembargadores, mas um voto fatiado do deputado estadual Sargento Lima (PSL) fez o improvável: Moisés seria afastado para responder se havia cometido crime o aumentar salário de procuradores sem aval da Alesc, enquanto Daniela teria até 120 dias para ser a governadora em exercício.

Existe algo muito raro, cobiçado e disputado no mundo da política: a chance de ter e exercer o poder, em qualquer esfera. Moisés teve essa chance através da improvável onda de 2018, Daniela conseguiu pelo afastamento do ex-colega de chapa no final de outubro do ano passado. O problema para ela é que a forma como tudo aconteceu, com o parlamento se sentindo ludibriado em seus acordos internos, fez com que essa chance não lhe fosse realmente oportunizada.

Durante um mês no cargo, Daniela nunca convenceu os políticos de que realmente substituiria Moisés de forma efetiva. Sua interinidade foi marcada por tuítes apagados, pela dificuldade de repudiar o nazismo professado pelo pai em diversas publicações e por um grande acordo estadual que acontecia discretamente entre Moisés e Júlio Garcia para que o retorno do titular se desse em novas bases políticas. E assim foi.

Continua depois da publicidade

Existe no mundo da política algo ainda mais raro do que uma chance de ter e exercer o poder: uma segunda chance. Moisés recebeu a sua ao retornar ao cargo de governador se apresentando mais aberto à política, aos partidos, ao diálogo com o parlamento. Eron Giordani, homem de confiança de Júlio Garcia, virou seu chefe da Casa Civil, seu articulador político. Dois deputados, dos tradicionalíssimos MDB e Progressistas, foram recrutados para o secretariado – antes orgulhosamente vetado para políticos de carreira.

Se o Moisés político apareceu, o governador submergiu, apagou-se. Enquanto a pandemia avançava aos piores patamares no Estado, Moisés fugia de temas e decisões que pudessem melindrar a nova base de apoio, entidades empresariais, a torcida bolsonarista que tentava em vão reconquistar. No Diário Oficial, o governo era nitidamente tomado pelas beiradas – cargo a cargo – por indicações partidárias. Nos holofotes, Moisés deixava o espaço para falas atrapalhadas do secretário de Saúde, André Motta Ribeiro, aposta pessoal que sobreviveu aos apelos dos novos aliados para que fosse substituído, e à insensibilidade burocrata de Paulo Eli, da Fazenda, comemorando recordes de arrecadação e números de emprego na indústria diante de uma sociedade fragilizada por um ano de pandemia e restrições impostas ou tácitas.

Quando Moisés ressurgiu em entrevistas, há pouco mais de uma semana, foi para dizer que era “preciso aprender a conviver com o vírus” e que as mortes eram naturais. Assim, com um governo de ilhas e de frouxa liderança, o governador partiu para encarar a ponta solta da crise política do ano anterior: a análise do segundo impeachment, o julgamento do caso da compra de 200 respiradores de UTI por R$ 33 milhões – pagos por equipamentos nunca entregues – que fraturou seu governo junto à opinião pública. Com uma base política ainda não amadurecida, sem torcida na sociedade e pouca articulação junto ao Judiciário.

E assim, a história aconteceu mais uma vez na longa sexta-feira, com um julgamento que começou às 9 horas e se estendeu até quase meia-noite. A cada voto de desembargador ficava claro que o Judiciário rejeitaria o segundo prato feito enviado pelo parlamento. Se em outubro do ano passado, quatro desembargadores fulminaram uma acusação frágil e sem respaldo na sociedade, desta vez cinco magistrados disseram que não poderiam ignorar os indícios de omissão do governador na compra que escandalizou o Estado. Somando-se a eles, Laércio Schuster (PSB) rompeu a unidade dos votos dos deputados estaduais a favor de Moisés e comeu frio, mas muito temperado, o prato da vingança por descontentamentos passados e presentes na relação com o governo.

Continua depois da publicidade

Esvaiu-se, então, já na madrugada de sábado, a rara segunda chance a que Moisés teve direito. Começa na terça-feira, quando terá largada o afastamento de até 120 dias do titular, a rara segunda chance de Daniela Reinehr de ter e exercer o poder em Santa Catarina.

Desta vez, ela terá a oportunidade. Ainda atordoados pelo julgamento de sexta-feira, os aliados de Moisés tentam entender o que aconteceu. Eron Giordani antecipou-se à exoneração que viria e deixou o governo ainda na madrugada de sábado. Em sua nova interinidade, Daniela deve tentar assumir o protagonismo com um gesto de impacto: a substituição no comando da Secretaria da Saúde.

Ela também deve tentar atrelar o governo catarinense ao Palácio do Planalto, sentar na mesa do presidente Jair Bolsonaro, atrair seus aliados locais – como o senador Jorginho Mello (PL) – e lideranças que ficaram deslocadas após a onda de 2018, como o ex-deputado estadual Gelson Merisio (PSDB). Quem estará com ela ainda é uma construção que não sabemos se conseguirá fazer – mas terá condições.

O julgamento do impeachment de Moisés, pelo impacto do caso dos respiradores e possibilidade de produção de provas e depoimentos, deve levar mais do que 30 dias para ser retomado. O governador afastado precisa manter com ele os quatro deputados que votaram contra o prosseguimento do processo: Marcos Vieira (PSDB), Valdir Cobalchini (MDB), José Milton Scheffer (Progressistas) e Fabiano da Luz (PT). Governadora interina, Daniela precisa conquistar pelo menos um. Terá a seu favor a caneta e uma constatação óbvia: se a primeira chance é rara e a segunda, ainda mais, uma terceira chance para Moisés ter e exercer o poder é mais do que improvável. Beira o impossível.

Continua depois da publicidade

Receba os textos, lives, podcasts e comentários na NSC TV de Upiara Boschi no WhatsApp clicando no aqui Para receber no Telegram, é só clicar em https://t.me/upiaransc