Na campanha eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro praticamente ignorou que tinha um candidato a governador em Santa Catarina. Em uma entrevista, à época, chegou a tratá-lo como “um comandante lá”. Nesta quinta-feira (2), o presidente Bolsonaro fazia críticas aos governadores que adotaram as mais duras medidas de isolamento social para enfrentar a crise do coronavírus, quando ouviu o nome do governador catarinense.

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– Esse Carlos Moisés, pelo amor de Deus. Se elegeu no meu nome. Mais um que se elegeu no meu nome. Passou a ser dono do Estado, é outro país. E as consequências estão aí – disse Bolsonaro, agora ciente do nome do coronel da reserva dos bombeiros militares que ajudou a eleger governador há um ano e meio.

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A resposta, a pedido da Folha de S. Paulo, veio ao estilo do Moisés que aprendemos a conhecer somente depois de eleito por 71% dos catarinenses sem passado político pretérito. Um tom ameno, com as críticas pontualmente colocadas.

– Agora não é hora de discurso político. Estamos falando da preservação de vidas. Estamos falando de retomada de atividades com critérios técnicos e colocando a vida em primeiro lugar, a exemplo do que fizemos ontem, liberando – com regras rígidas – o segmento da construção civil. É isso que estamos fazendo. Debate político agora é inoportuno e contraproducente – disse Moisés.

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O distanciamento do governador Moisés em relação ao presidente Bolsonaro começou logo após as eleições – gestos, escolhas, rumos de governo. Ferveu com o racha da ala bolsonarista da bancada estadual do PSL, quatro deputados que passaram a se posicionar francamente contra o governo. Ficou desenhada quando Bolsonaro decidiu deixar o PSL para lançar – por enquanto apenas como ideia – o Aliança pelo Brasil. Moisés continuou pesselista e não perdeu a chance de dizer que o partido agora teria “a cara do governador”.

O coronavírus explicita ainda mais a divergência, com Bolsonaro criticando publicamente medidas dos governadores em favor do isolamento social – diz que o remédio pode ser pior que a doença, pelos efeitos econômicos inevitáveis. A mira do presidente teve como alvos prioritários, até agora, os governadores João Dória (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), provavelmente porque se insinuam como presidenciáveis em 2022. A citação por um apoiador no Planalto fez com que o gaúcho Eduardo Leite (PSDB) e Moisés entrassem no grupo dos alvos do presidente.

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Na literatura, Robert Louis Stevenson criou uma histórica icônica de dupla personalidade – “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, editada no Brasil como “O médico e o monstro”. Jekyll, o ponderado e bem quisto médico que criou uma poção que lhe despertava o outro personagem, Hyde – dado a vilanias, podemos dizer. Trazendo para o contexto da loucura política e pandêmica que o Brasil e Santa Catarina vivem, podemos constatar um pouco de Jekyll e Hyde em Moisés e Bolsonaro neste momento.

O catarinense se elegeu como o Comandante Moisés, “o único candidato do Bolsonaro em Santa Catarina”. Eleito, talvez por efeito de alguma poção, despiu a farda e foi atrás de construir sua própria trajetória.

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Bolsonaro, por sua vez, elegeu-se com muitos acreditando que após a vitória deixaria o lado agressivo e provocador e passaria a agir como presidente do Brasil, talvez por efeito de uma poção. A crise do coronavírus deixou Bolsonaro ainda mais parecido com o personagem de Stevenson.

Um dia minimiza a “gripezinha”, noutro trata como tema sério e preocupante; uma dia elogia a ação de governadores e outros poderes, noutro os ataca. O pronunciamento à nação na terça-feira parecia ser a sinalização de que o presidente entendera a gravidade da situação, a necessidade de somar esforços e enfrentar juntos as consequências da pandemia – na saúde da economia. Na quarta, vieram as principais medidas econômicas para socorrer trabalhadores informais e proteger empregos. Hoje, não se segurou após dois dias de Dr. Jekyll.