Proscrito pelo mesmo regime militar que ajudara a implantar com seus veementes discursos e articulação política, o jornalista e ex-governador Carlos Lacerda – um ícone histórico do pensamento de direita no Brasil – deu uma resposta curiosa ao ser perguntado certa vez sobre a legalização do Partido Comunista Brasileiro.

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– Não tenho medo dos comunistas. Sou contra o comunismo. Prefiro um partido comunista defendendo suas ideias dentro da lei do que um partido comunista fora da lei conspirando contra a lei.

Upiara Boschi: Volta de Lula ao jogo dificulta alternativa entre PT e Bolsonaro para 2022

Era 1968 e Lacerda tentava criar a Frente Ampla com ex-adversários na tentativa de salvar a eleição presidencial direta de 1970. A história não caminhou assim, sabemos todos, e o regime militar manteve a presidência da República em eleições sem disputa, indiretas, até o pleito de 1985 – mesmo ano em que o antigo PCB acabou registrado depois de décadas na ilegalidade. Falar de comunismo e regime militar incendeia paixões e narrativas – no Brasil até o passado é incerto, dizia um ex-ministro.

Puxo a frase de Lacerda da lembrança ao ver o ex-presidente Lula (PT) transformar em um verdadeiro comício sua primeira entrevista coletiva após recuperar os direitos políticos. A ambição do petista de voltar ao cargo de presidente da República que ocupou por duas vezes entre 2003 e 2010 está mais do que clara. E está, pelo menos por enquanto, legalizada.

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Entenda a situação das condenações e candidatura de Lula após a decisão de Fachin

Lula olhou para o passado para atacar a Operação Lava-Jato – sua algoz em declínio após a decisão do ministro Edson Fachin que considerou o ex-juiz Sérgio Moro incompetente para julgar o ex-presidente e pelo julgamento interrompido pelo STF sobre a própria conduta do ex-magistrado de Curitiba. Lula olhou para o presente ao defender vacinação, auxílio emergencial de R$ 600, máscaras e álcool em gel contra a pandemia do coronavírus. Olhou para o futuro ao criticar com veemência o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a quem espera enfrentar nas urnas em 2022.

Lula volta a ser elegível e internet explode em memes

O petista tem sua posição de pré-candidato legalizada em um contexto que indicava favoritismo para a reeleição de Bolsonaro, mesmo com alta rejeição e uma errática condução das ações do governo federal na pandemia. Um favoritismo justificado pela inexpressividade dos possíveis adversários – figurinhas carimbadas (e não eleitas) de outras disputas, candidatos a outsider, etc. Lula equilibra e polariza o jogo. Talvez até, como eu já disse, estejamos vivendo desde já o mais longo segundo turno da história brasileira.

Por isso, é interessante notar que Lula usou seu primeiro pronunciamento para mandar sinais de que pode liderar uma frente anti-Bolsonaro que vá além dos partidos de esquerda. No Twitter, Rodrigo Maia (DEM-RJ) fez o primeiro aceno para conversa, respondido positivamente pelo petista ainda no palanque. Também é interessante notar a mudança de tom de Bolsonaro em relação às vacinas – agora se apresenta como entusiasta da vacinação um presidente que até esses dias desdenhava “vachinas” e que queria a multinacional Pfizer rastejando para vender ao Brasil um produto que o mundo inteiro quer. É bom para o Brasil que mude o tom e os atos, incluindo aparecer em público de máscara horas depois da fala do adversário petista.

O leitor talvez não tenha entendido porque resgatei a fala de Carlos Lacerda sobre o partido comunista no final dos anos 1960 para abrir este texto. Explico. Lula e Bolsonaro são, neste momento e por condições completamente diferentes e incomparáveis, as duas grandes expressões políticas do Brasil. O confronto do ex-sindicalista e do ex-militar talvez seja um episódio histórico que os brasileiros precisem enfrentar e assimilar. Cheia de boas intenções, a Lei Ficha Limpa incentivou um hábito negativo na política nacional: tentar tirar nos tribunais aqueles que podem ser adversários difíceis nas urnas. Temos visto isso em várias esferas.

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Parafraseando Lacerda: é melhor um Lula elegível, para ganhar ou perder, do que um Lula impedido de concorrer pairando como um fantasma sobre eleições que boa parte da população considera deslegitimadas por sua ausência. É melhor até para Bolsonaro – que não deve ter medo do petista, deve enfrentá-lo.

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