Havia uma espécie de trégua bem combinada. A gurizada faria menos “artes”, os pais poupariam as mãos e as palmadas. O Dia-D do armistício era o dia 24, a véspera do grande dia. Até lá, em nome da paz caseira e universal, todas as reprimendas e castigos ganhavam direito a um habeas-corpus, no melhor estilo Gilmar Mendes. Lembro-me apenas de um armistício quebrado, bem na véspera do Natal, por razões que confesso um tanto fortes.

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Inspirado pelo relicário do  presépio – as pastagens, a manjedoura, Nossa Senhora, São José, o Menino, os Reis Magos, os boizinhos e ovelhinhas – reuni minha própria companhia teatral numa velha garagem, geminada à casa de uma vizinha – genuína encarnação da bruxa Alcéia, Dona Tidinha de apelido. Morava só, casada com sua rabugice e consorciada com o ódio que devotava às crianças. Minha “troupe” ia levar O Manto Sagrado, direção deste vosso cronista, apoiado por um cast recolhido entre os pequenos facínoras do Largo Treze de Maio. Logo o desastre começou a rondar o “palco”. O cabo da vassoura que sustentava a cortina atravessou a parede e invadiu o forno de D. Tidinha. O velho fogão à lenha entrou em pane, a fumaça refluiu para dentro da cozinha, o cachorro se assustou e aplicou formidável dentada no braço da velha.

Meu pai, um homem justo, foi obrigado a se desculpar com a veneranda senhora, prometendo um corretivo aos que tiveram a idéia de incorporar tão trágico capítulo àquela peça natalina. Senti, nos baixos hemisférios do meu Equador, dois vergões avermelhados, insólitos pompons de Natal – recebidos como penitência, apesar do armistício. Ah, se naquele tempo vigorasse a Lei da Palmada! Meu bumbum estaria salvo, mas meu caráter…

O espírito do Natal só foi restaurado quando Papai Noel anunciou o meu presente: fui curar minhas chagas e mágoas a bordo do selim de uma reluzente Monark. Então, os sinos voltaram a tocar e os lagos do presépio puderam, enfim, retomar o seu brilho.

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Sei que é acreditar demais nos poderes da velha lenda nórdica. Mas, não daria – meu bom Papai Noel – pra trazeres dentro do teu saco (êpa!) um pouco da proverbial honestidade da Finlândia – o país mais honesto do mundo, segundo o último ranking da Transparência Internacional?

 

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