Claro, tudo é culpa dos “hereges” – aqueles que não acreditavam em nada a não ser na vil pecúnia e ainda praticavam crimes contra a fé, “os ateus”, segundo dona Ester, minha avó.

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Se um filho matava o pai, um irmão repetia Caim, matando Abel, minha avó não perdia a oportunidade de recitar o seu mantra:

– São os hereges!

Deus a poupou de viver os dias de hoje. Canalhas liderando nações, ladrões subornando a Justiça, filhos matando mães para sustentar vícios alucinógenos. Crianças apedrejando o Papai Noel e assaltando-o, como acabaram de fazer em São Paulo.   Serão “os hereges”?

Ateus, gentios, incréus, infiéis, mouros, pagães, malfeitores com “foro especial” – tenham o nome que tiverem, o mundo está cheio de agentes do Mal. Não se trata de entoar hosanas ao tempo passado, nem de uma comichão puramente saudosista. Sinto que o Natal vai, aos poucos, perdendo a sua aura de grande festa religiosa. O que prevalece é a sua crosta comercial e profana. “São os hereges!”– denunciaria dona Ester.

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Fecho os olhos e vejo minha avó rezando o terço, ao lado do presépio. Rezava-se no Natal. Dia 24 de dezembro tinha Missa do Galo. Verdadeiro desafio de fé e resistência para um pequeno cristão, heroicamente acordado até as duas da manhã, na capela do Menino Deus. Para não ser “um herege”, acudi ao convite de minha avó, com uma curiosidade atrás da orelha. O que seria essa “Missa do Galo”? Celebrantes num poleiro, galos acompanhando toda a liturgia, entre um e outro cacarejo?

Pois o mundo de hoje parece que pertence aos hereges. Quem seriam os novos hereges senão aqueles que conspiram contra o fim da impunidade num país corrompido? Não seriam os que tramam contra a reforma da providência, só para assegurar o privilégio de escandalosas aposentadorias? Ou seria aquele Papai Noel togado que distribui habeas-corpus de presente, soltando todos os poderosos que a justiça de primeiro grau já condenou?

***

Esses novos hereges estão empenhados em “manter a eficiência” do STF no julgamento dos réus da Lava Jato, entre aqueles que detém o chamado “foro privilegiado”.

Colarinhos brancos a espera de julgamento são como perus privilegiados, protegidos pelo biombo de um mandato eletivo. Não morrem na véspera, nem no dia seguinte. Nem antes, nem depois. Vivem seus dias de desigual impunidade – cultivada pelos novos hereges.

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