Olho a tainha cara a cara, numa banca de peixe do Mercado. Ela pisca um olho e produz um sorriso escamado, quase um esgar. Parece querer sussurrar alguma coisa. Chego mais perto. E a tainha fala:
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— Cheguei de caminhão. Não sou tão fresquinha assim…
Pelas manhãs do Mercado Público se evolam cheiros da Provence, terra que trata os prazeres da mesa, do prato e do copo com a devoção digna de um sacramento.
Todo o sul da França é considerado um “mercado ao ar livre”, o próprio ar recende a orégano, alecrim, funcho e alfazema. Nosso Mercado deveria zelar por esses cheiros e por esse colorido provençal.
Tomara que, a pretexto de organizar um novo “mix”, não acabem estragando o que já está bom. E que não encontremos ali, no futuro, algo antinatural, como alguma filial de muambas do Paraguai. Boxes que não se destinem à natural vocação da velha casa amarela: tabuleiros de legumes, verduras, frutas, peixes, carnes, víveres, bistrôs para se viver a vida, consumindo umas e “ostras”.
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Neste inverno que se desenha promissor à temporada das tainhas ovadas, mas que ainda não “inaugurou” a primeira rede realmente premiada, vale a pena repetir a sugestão de mestre Eça de Queirós _ colhida da “Ilustre Casa de Ramires” _ uma receita de tainha bem assada:
_ Aqui está como se prepara, ó estudiosos! Tomai uma tainha. Escamai e esvaziai. Preparai uma massa bem batida com queijo (que pode ser parmesão), azeite, gema de ovo, salsa e ervas fragrantes, e recheai com ela a vossa tainha. Untai-a então de azeite e salpicai-a de sal. Em seguida, assai-a num lume forte. Logo depois de bem passada e alourada, umedecei-a com vinagre superfino. Servi _ e louvai Netuno, Deus dos peixes…
***
Essa ova “manufaturada” por Eça perde para as nossas ovas naturais, gêmeas, geradas no ventre das nossas tainhas manés. Mas _ vinda de quem vem _ não custa nada reconhecer que a receita tem lá o seu estilo…
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Vejo minha avó espremendo a barriga das tainhas, examinando as ovas, regateando o preço. Sinto o cheiro das ovas fritas e a boca “embuchada” pela ingestão de duas grandes rodelas.
Quando deparo com uma “tagenias”, ou “boa para fritar”, do grego antigo, sinto vontade de repetir o ritual de minha avó. Aperto o peito oliváceo de uma delas, duplamente ovada, a boca semiaberta na última careta da morte.
É das boas. Ova é vida.