Se durante a Semana Santa o jejum é uma forma de penitência, uma espécie de luto pela morte do Redentor, no Natal o seu renascimento é comemorado exatamente por uma celebração antípoda – a comilança. É o pecado do Natal.
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Imaginem se todo recém-nascido abrisse na família um tal apetite que demandasse a montagem de ceias, jantares e um festival de proteínas capazes de alimentar a Etiópia por um ano. Iria faltar proteína na terra e peixe no mar, o Menino teria que antecipar o milagre da multiplicação de pães e peixes muito antes de assumir a sua chamada “vida pública”.
Assim será o Natal. A pretexto de celebrar o Menino, daremos de mamar à “Menina” – isto é, a nossa barriga.
Na base do “Amém, Jesus”, vai todo mundo se forrando, o “renascimento” servindo de pretexto para justificar o pecado da gula – que é o vício de comer e beber com sofreguidão.
Estaremos todos absolvidos. Atire a primeira pedra quem nunca comeu e bebeu à tripa forra na Noite do Menino Jesus. E que não repetiu a ceia, no dia seguinte. A pretexto de elevar o espírito, ocorre a satisfação da matéria. O próprio Menino já deve ter se acostumado com o apetite dos seus adoradores. E todos os anos perdoa a volúpia dos glutões. Ao longo da história e, principalmente, da Literatura, a boa mesa sempre esteve presente à boca dos homens de boa vontade e excelente estômago.
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A melhor descrição em “O Crime do Padre Amaro”, de mestre Eça de Queiroz, é a dos talheres, pratos e pratarias na mesa do abade de Cortegaça, um pio sacerdote, que deveria cultivar as virtudes da abstinência. Ali se destaca o opíparo jantar oferecido pelo abade aos colegas do clero: o caldo de galinha, a famosa cabidela, uma invenção reivindicada pelo próprio sacerdote. E mais os “bacorinhos” (leitões) ao forno, o porquinho à moda da Bairrada, os vários tipos de bacalhau – o da batata aos murros e à maneira Gomes Sá.
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Em torno da manjedoura (que se deriva de “manger”), reúnem-se os abades e todos nós – os fiéis – para imaginar o pratos que ainda sacrificaremos durante “as festas”. Até lá comeremos tudo – até mesmo a “Crise”.