Meu reino pelo cheiro de pão fresquinho, vindo de uma carrocinha dos anos 1950. Há cheiros que valem uma vida. E há perfumes que resumem uma paixão. Nas cavernas, o homem perseguia o cheiro do alimento — e saía à caça.

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No século XXI, o cheiro mais perseguido é o da casa — o da segurança. A “rua” anda cada vez mais perigosa.

A primeira coisa que emerge da minha infância é o cheiro de pão. Chegava de carrocinha, o padeiro na boleia, o orelhudo puxador justificando o ditado “cavalo de padeiro”. Parava em todas as casas do Largo Treze de Maio, o cheiro do pão fresquinho impregnando o ar, anunciando a chegada da padaria “móvel”.

Pão de trigo, de duas metades. (Seria indelicado chamá-lo de “bundinha”, mas é o que era: uma nádega de duas bochechas). Pão francês. Pão doce de farofa. Pão de tranças. Pão de milho. Pão Mamica — doce, comprido, com um “bico de seio” na ponta. 

A carrocinha já era diferente: empinada, tinha só duas rodas, o traseiro dividido em dois compartimentos ligados por dobradiças. O padeiro anunciava a sua presença batendo a tampa do “guarda-pães” contra a própria carroça. A vizinhança afluía, pelo trote dos baios ou pelo barulho do pregão: “Padeiro!” Todos em “roupas de estar em casa”, compravam quase todo o estoque de pães, sem falar nas roscas de polvilho.

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O próprio padeiro fazia o troco e seguia rumo ao próximo freguês, levando o pão fresquinho na carroça e alguns micróbios na mão.

***

Não fui testemunha dos “pombeiros” da Praça XV, nem da “feira” do Mercado velho. Mas vivi a época dos “verdureiros”, ainda ativos até o início dos anos 1960. Basta ter sido mais jovem do que Paul McCartney para haver testemunhado os “paus-de-canga” atravessados nos ombros, dois grandes balaios nas extremidades, equilibrados por negros ornamentais, saídos de alguma pintura de Debret. Ali dentro dos cestos, as frutas, os legumes e as hortaliças.

A freguesa apertava a “fruta-de-conde”, a “laranja açúcar”. E descobria os caquis, os abacaxis:

— Quanto é o caqui? E o ananás?

Tempos em que o olfato parecia o rei dos sentidos, apenas coadjuvado pelo sentido da visão.

Nada do que cheiramos hoje na morgue inodora dos hiperfrigoríficos.

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