Ameaçar chutar para escanteio um ministro da Saúde que segue aquilo que preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS) e tem o trabalho amplamente elogiado soaria como um devaneio, ainda mais em meio a uma pandemia que apavora o mundo – e que no Brasil está apenas entrando em seu estágio mais crítico. O presidente Jair Bolsonaro, no entanto, mais uma vez deu mostras de que parece governar em um universo paralelo e que não liga para a opinião de especialistas da área ao cogitar catapultar Luiz Henrique Mandetta da mais importante pasta, hoje, do país.

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Não bastasse toda a aflição provocada pelo novo coronavírus, o Brasil viveu uma segunda-feira de adicional tensão política. Pela tarde, vazou a informação de que Bolsonaro estava decidido a demitir Mandetta. Parecia tudo encaminhado e até mesmo as gavetas do ministro chegaram a ser limpas, como ele mesmo admitiu no início da noite. Militares e parlamentares agiram para apagar o fogo e convenceram o presidente a recuar.

Caso fosse confirmada, a saída de Mandetta não seria surpresa. Bolsonaro já não faz questão de esconder o processo de fritura do ministro em trajetória de ascensão, que angaria cada vez mais apoio popular – e também político. Na última quinta-feira, o presidente admitiu que ele e o ministro da Saúde já estavam “se bicando há algum tempo”. No domingo, disparou outro petardo: disse que havia integrantes do governo “se achando” e que “a minha caneta funciona”. O alvo não tinha nome, mas nas entrelinhas a mensagem e o destinatário eram mais do que evidentes.

Há um nítido conflito de discursos entre ambos. Enquanto Bolsonaro subestima a gravidade da pandemia e ataca governadores e prefeitos que adotaram medidas mais restritivas na economia e na circulação de pessoas, Mandetta – e todo o restante do mundo civilizado – segue defendendo o isolamento social como medida mais eficaz para conter o avanço da Covid-19. Ainda que tente se esquivar das polêmicas insinuações do chefe, o ministro paga o preço por cometer um dos principais pecados do bolsonarismo: contrariar a opinião do seu líder máximo.

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Como chefe de Estado respaldado por um processo democrático, Bolsonaro tem a prerrogativa de mudar a equipe quando bem entender. E tem a obrigação moral de fazê-lo se o desempenho estiver aquém do aceitável. Divergências são comuns em todo grupo de trabalho. O manual dos bons líderes, porém, ensina que eventuais arestas devem ser aparadas internamente, sem lavação de roupa suja aos olhos de todos – e muito menos com indiretas pela imprensa.

Ao fritar Mandetta publicamente, o presidente rasga esse manual. Um bom líder, afinal, não é aquele que tem a caneta na mão, mas quem conduz um time à frente, não se incomoda com o brilho individual de integrantes da sua equipe – pelo contrário, sabe que isso chancela a boa escolha que fez – e não se importa em dividir os holofotes. É quem reconhece que opiniões diferentes e personalidades distintas são importantes na construção de soluções para os problemas coletivos e que, embora exista uma hierarquia a ser respeitada, coloca-se como um igual, não acima dos outros. É tudo que Bolsonaro não vem fazendo na gestão dessa crise.