*Artigo de Lourdes Salette Cezari de Aquino, socióloga
Chegamos outra vez às comemorações da Páscoa. Sem entrar em questões religiosas e no aspecto comercial que a data instiga, o que me toca é a dura realidade da fome. A Igreja Católica, na Campanha da Fraternidade 2023, traz um slogan forte e intrigante: “Fraternidade e fome”, seguido do lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Fui buscar alguns parâmetros para entender esse triste calcanhar de Aquiles do mundo moderno, altamente tecnológico e com muita fome.
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Em 2022, a OMS declarou que, segundo a escala de insegurança alimentar, fome é definida como “privação alimentar”. Já insegurança alimentar moderada é quando as pessoas enfrentam incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos e são forçadas a reduzir a qualidade ou quantidade de alimentos. A FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura/ONU) define a fome como “uma sensação desconfortável ou dolorosa causada por energia insuficiente da alimentação”. Privação de alimentos; não comer calorias suficientes.
Para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Brasil, país considerado o celeiro do mundo, carrega uma grande contradição: a fome é real e atinge hoje cerca de 33,1 milhões de brasileiros. No banner da campanha, surgem mãos que repartem e dão vida à solidariedade guiada pela fé. O arroz e o feijão, alimento do povo, passam pelas mãos de homens e mulheres que sabem que a solução do problema da miséria e da fome não está somente nos recursos financeiros, mas na vida fraterna. “Ninguém deve sofrer com a fome quando realmente vivemos como irmãos e irmãs”, afirmam.
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E vem a pergunta: como comemorar a Páscoa diante do retrato mundial de fome e insegurança alimentar? No senso comum, ouvimos pessoas dizendo: veja menos noticiários; leia menos; as estatísticas não são verdadeiras; você tem uma situação social confortável; desfrute a vida; não é de sua responsabilidade; é culpa dos governos que não ensinam a pescar; tem gente que não tem jeito, não querem nada com nada; cada um colhe o que planta; só não trabalha quem não quer.
Ouvimos também afirmações como: se Deus quer assim; tenha fé; com pensamento positivo, você consegue; o que eu ganho é pouco, mas agradeço por ter essa renda; faço qualquer coisa; não tem vaga na creche; hoje, sem médicos no SUS; vou conseguir uma cesta básica… Entre tantas outras autoafirmações para sossegar a dor instalada no peito.
Não desvinculados da fome, surgem vários indicadores: planeta com escassez de água; calor acima dos parâmetros médios; regiões áridas; chuvas catastróficas; trabalho análogo à escravidão; setores com lucros exorbitantes; lista de bilionários cada vez mais bilionários; governos corruptos; sonegação de impostos; guerras; comércio de luxos; indústria de armas com superpoderes; mão de obra desqualificada; sistema educacional sucateado; novas epidemias a cada momento.
Outra vez me questiono: como comemorar a Páscoa da ressurreição, da vida, da fraternidade? Quem sabe, juntamente às várias campanhas de distribuição de alimentos (extremamente necessárias), fosse oportuno veicular reflexões sobre a realidade mundial. Quem sabe isso contribuiria para o entendimento de que a dor da fome e a riqueza exacerbada não são legados dos deuses, mas que são, sim, resultado de uma sociedade construída por nós, pelos habitantes deste planeta, do hoje e do ontem. Se, ao longo da história, fomos nos relacionando e chegamos ao que estamos; se fomos nós, seres humanos, cidadãos do mundo, que assim deixamos a humanidade, parece evidente e claro que somos nós que temos as repostas de como fazer diferente.
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Não há segredos na lâmpada mágica; as mudanças não caem do céu; salvador da pátria não existe; sozinho, você pode caminhar um pouco, mas juntos é que podemos conquistar mudanças que permitam dar condições básicas a todos os que julgamos irmãos. Que venha o coelho, o amendoim, o chocolate, as orações, o abraço, as doações, os
presentes… e que junto venha o pensar: Onde estou eu nesta realidade? Conheço alguém que passa fome? Fome de quê?
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O que será que o meu e o seu Deus pensam da fome no mundo? Cada um é um fio na teia desta vida. Vida, em que a verdadeira liberdade se dá quando tenho como viver dignamente, saciar minhas fomes, como diz a música dos Titãs:
Você tem fome de quê?
Você tem sede de quê?
A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade
“Dai-lhes vós mesmos de comer”, e acreditemos que dividir é acrescentar vida a quem tem fome. Feliz Páscoa!
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