O velório do historiador, músico e compositor Vicente Telles, que faleceu na manhã desta quinta-feira no Hospital São Francisco, em Concórdia, aos 86 anos de idade, será no Memorial do Contestado, em sua residência. Era seu desejo receber as últimas homenagens onde viveu e onde realizou pesquisas, fez milhares de palestras, preservou a memória do Conflito do Irani e da Guerra do Contestado e produziu inúmeros eventos musicais, folclóricos e culturais.
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O deputado federal Jorginho Melo está seguindo para Irani, onde acompanhará o velório do extraordinário cidadão catarinense. O parlamentar entregou o titulo de Cidadão Honorário a Telles, que nasceu em Palmas, no Paraná, em consequência da Guerra do Contestado. Pai e mãe mudaram-se para o território paranaense temendo os efeitos do conflito.
– Vicente Telles resgatou a história dos vencidos- disse Melo ao homenagear o homem que mais se dedicou ao maior conflito da historia de Santa Catarina e do Brasil.
O sepultamento nesta sexta-feira, às 10 horas, em Irani.
No livro que lancei em outubro de 2016, intitulado “Vicente Telles, O Mensageiro do Contestado”, escrevi uma introdução que começa assim:
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“Um cenário deslumbrante, com morros e montes de variada ondulação e esplêndidas araucárias projetando-se do solo coberto de mata virgem, fortes despenhadeiros, uma maravilhosa cachoeira e um vale esverdeado com tonalidades diferentes ditadas pela riqueza da flora, enriquecem a paisagem que se descortina da casa de Vicente Telles. Fica a 1.200 metros de altitude, bem próxima do cruzamento da BR-282 com a BR-153, na rodovia que leva a Concórdia, e no lado oposto e em frente ao histórico Cemitério do Contestado.
A construção é de material, tem dois pavimentos, com um projeto simples, mas com concepção e execução confortável e acolhedora. Seu interior tem decoração familiar, artística e cultural. Na garagem, chama a atenção um banner alusivo a eventos comemorativos do centenário do Contestado.
Ganham destaque na decoração doméstica fotos familiares e três gaitas (acordeões), uma dos quais herança paterna, fabricada em 1914, produção artística de imigrantes italianos que moravam no Rio Grande do Sul. Uma joia de instrumento musical, fruto da criatividade artesanal do fabricante, conferindo-lhe rara beleza visual e auditiva.
No amanhecer, o sol projeta-se sobre o sul, iluminando a região de Concórdia, num esplêndido cenário. O fim da tarde faz recordar a conhecida cantiga de Dorival Caymmi “vento que assobia no telhado/chamando para a lua espiar”. Fraco, numa noite enluarada, oferece uma certa musicalidade romântica; mais forte, na escuridão da noite, chega a assustar pelo estranho som das árvores em movimento. Traz a lembrança de fantasmas ou espíritos sofridos dos mortos no Conflito do Irani, em 22 de outubro de 1912. A alguns metros dali repousam os restos mortais dos caboclos e soldados e, numa simples vala, o monge José Maria, todos envolvidos naquele que se transformou no primeiro embate bélico do mais sangrento e longo movimento social e rebelde da história de Santa Catarina e do Brasil.
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Em consequência da transferência da família de Irani para o Paraná, efeito dos atos remanescentes da violência da Guerra do Contestado, Vicente Telles foi concebido em Irani, mas nasceu em Palmas, no Paraná, em 5 de outubro de 1931. Ingressou no Exército em 1948 contra a vontade – não queria abandonar a primeira paixão de sua vida, que morava nas proximidades – e foi servir em Porto União(SC). Fez carreira, atuou no Rio de Janeiro e em Salvador.
Retornou depois de décadas a Irani para cuidar da mãe, filha de pelado perseguido na guerra e que virou herói décadas depois do movimento caboclo. Ali,Vicente casou e teve um filho, hoje músico – Vicente Heliodoro Telles – premiado no Brasil e no exterior.
Há décadas, o músico, compositor e folclorista vive ali inteiramente dedicado a tudo o que se relaciona com o Contestado, causa que abraçou com singular paixão desde que passou para a reserva do Exército, nos idos de 1978. Nestes quase 40 anos não faz outra na vida senão ouvir testemunhos, pesquisar, compor músicas, cantar, da aulas, participar de eventos e, sobretudo, contar histórias da guerra para enaltecer as qualidades humanas e o espírito solidário dos caboclos, as terríveis injustiças que sofreram por conta de absurdas e equivocadas decisões políticas do governo republicano e do governos estaduais do Paraná e Santa Catarina. Tudo feito com paixão a incontáveis grupos de estudantes, turistas e estudiosos, vindos de todos os recantos de Santa Catarina, do Brasil e até do exterior.
Missão que executa com incontida alegria, sempre acompanhado de suas gaitas e com uma metodologia singular e própria, motivando a plateia com solos dos episódios e dos personagens do conflito, além de explicações simples e motivadoras. Como espinha dorsal e condutor de todas as palestras a importância da educação, do “Olhar de Mãe”, da família, dos princípios, dos valores, do caráter pessoal e da dignidade humana.
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São sempre aulas especiais pela didática e pelo conteúdo. Vicente Telles não fala sobre o Contestado. Ele vive o que descreve, se emociona com o que conta e, pelo som de seu inseparável acordeão, deixa até a impressão de encarnar o espírito caboclo, pela maneira pedagógica e convincente com que enaltece as qualidades e as características do homem do Contestado.
Para estes grupos de crianças de escolas públicas, de turmas de universitários realizando trabalhos acadêmicos, a turistas estaduais e visitantes nacionais, as lições são ministradas no Memorial do Contestado, uma construção modesta, erguida pelo próprio Vicente Telles, com recursos próprios, peças antigas, obras do artesanato regional e cartazes históricos.
Nos últimos anos, em promoção, divulgação e pesquisa, ele se transformou na “alma do Contestado”, no “espírito do Contestado”, no “apóstolo do Contestado”, ou como consta do título do livro, o mais completo e o mais apaixonado “mensageiro do Contestado”.
VÍDEO: Assista a entrevista com Vicente Telles feita por Moacir Pereira em 2015
Leia as publicações de Moacir Pereira