A juíza Maria Paula Kern, da 12ª Zona Eleitoral da Capital, determinou a remessa ao Ministério Público Eleitoral do processo a que responde o ex-governador Raimundo Colombo (PSD) para verificar a possibilidade de ser oferecida a suspensão condicional do processo, que trata de uso do recebimento de caixa 2 da Odebrecht na campanha de 2014. O crime é tipificado no artigo 350 do Código Eleitoral.
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O teor da decisão é o seguinte:
1. Não obstante tenha sido proferida decisão de recebimento da presente denúncia, no último dia 21/6/2018, entendo necessário e razoável reexaminar o preenchimento dos requisitos elencados pelo art. 41 do Código Penal, à luz das teses suscitadas pela defesa em resposta à acusação, notadamente pelo fato de ser a Juíza Eleitoral titular responsável pela instrução e julgamento da desta ação penal.
2. Inicialmente, consigno que os fatos apurados na presente ação penal são totalmente distintos dos investigados no Inquérito n. 0006114-13.2018.8.24.0023, arquivado perante a 2ª Vara Criminal da Capital, no último dia 10/8/2018.
Naquele processo, o réu estava sendo acusado por alegada ocorrência de crime de corrupção passiva; neste, o órgão acusatório imputa ao acusado a prática do crime de falsidade ideológica para fins eleitorais.
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Ademais, na ação antes mencionada, alegava-se a suspeita de promessa de fraude à licitação à empresa JBS; nesta, alega-se a ocultação de doações recebidas da empresa ODEBRECHT S/A para financiar as campanhas eleitorais do acusado.
3. Feita essa breve digressão, anoto que é firme o entendimento da jurisprudência no sentido de que, “quando do recebimento da denúncia, não há exigência de cognição e avaliação exaustiva da prova ou apreciação exauriente dos argumentos das partes, bastando o exame da validade formal da peça e a verificação da presença de indícios suficientes de autoria e de materialidade” (STF, ARE 1089977 AgR, Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 29/06/2018, DJe-157 de 06-08-2018).
Ou, ainda, “a denúncia na fase de seu recebimento demanda tão somente cognição sumária, isto é, independe de maiores aprofundamentos sobre o lastro probatório, bastando que haja materialidade na conduta e indícios de autoria” (STF, Inq 4210, Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 20/03/2018, DJe-080 de 25-04-2018).
Firme nessa premissa jurisprudencial, exsurge impositivo reconhecer a presença dos pressupostos legais exigidos para o início da persecução penal requerida pelo Ministério Público Eleitoral, pelas razões que passo a expor.
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4. De início, reconheço a denúncia como intrinsecamente perfeita, mostrando-se infundada a alegação de inépcia da peça acusatória.
A acusação deve descrever, é claro, uma prática delituosa. Basta, neste contexto, a referência à figura típica que dê suporte ao enquadramento normativo. Em outras palavras, não é exigido que todas as minudências pertinentes à conduta do acusado sejam trazidas desde logo. Isso pode, se necessário, ser apurado no curso da ação penal.
Com efeito, quando o art. 41 do Código de Processo Penal dita que a inicial deva ter a “descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”, há de se ter adequada compreensão.
Não se cuida de trazer para os autos tudo quanto se vincule à ação ou omissão. Quer-se que o núcleo central dos fatos esteja exposto. Deseja-se que o relato dos fatos se encaixe na definição do fato típico, tal qual posta na lei penal, nada além disso.
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No caso, o Ministério Público Eleitoral trouxe uma descrição que se relaciona com perfeição ao apresentado simultaneamente pelo art. 350 do Código Eleitoral. Sustenta-se a tese de que o acusado, com o objetivo (eleitoral) de falsear a verdade sobre o financiamento de sua campanha, omitiu nas prestações de contas as doações recebidas da Empresa ODEBRECHT S.A., nas eleições de 2010 e 2014. Aponta-se, ainda que em termos aproximados, os locais e os momentos (datas) das omissões.
Nesse sentido, sem consistência jurídica a alegação da defesa no sentido de que a conduta descrita na peça acusatória não constituiria fato típico, já que o Tribunal Superior Eleitoral consolidou o posicionamento de que “a omissão de recursos na prestação de contas de campanha eleitoral pode configurar o crime previsto no art. 350 do CE, a depender da análise do caso concreto sobre as circunstâncias da conduta e sua interferência na autenticidade ou fé pública eleitoral. O fato de a prestação de contas ser cronologicamente posterior às eleições não afasta por si só a finalidade eleitoral da conduta, que deverá ser averiguada na instrução processual, a partir do caso concreto e da real ofensa ao bem jurídico protegido pela norma” (REspe nº 267560, Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, DJe de 09/05/2018).
À oportuna análise da prova, que há de ser em sede de cognição exauriente, é que se debita referendar – vistos então todos os fatos que se confirmarem – se o fato típico realmente se deu.
Rejeito, portanto, essa primeira sustentação defensiva.
5. Tocante à prefacial de ausência de justa causa, entendo igualmente que esta não merece prosperar.
Isso porque as circunstâncias fáticas narradas demandam apreciação judicial e existem razões suficientes para defender que a acusação do Ministério Público não é aventureira, sendo merecida a continuidade da causa, abrindo-se a oportunidade para a plena instrução, pautada na ampla defesa e no contraditório.
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Vale destacar que o juízo de recebimento da denúncia é de mera delibação, nunca de cognição exauriente. Assim, há que se diferenciar os requisitos para o recebimento da exordial acusatória, delineados no mencionado art. 41 do CPP, com o juízo de procedência da imputação criminal.
No caso, o teor das delações premiadas e da documentação trazidas com a peça acusatória constituem indícios da possível materialidade do crime de falsidade ideológica eleitoral (CE, art. 350).
Nos depoimentos prestados pelos colaboradores são relatadas circunstâncias fáticas que revelam a existência de possível estratagema desenvolvida com o intuito de transferir clandestinamente recursos financeiros da empresa ODEBRECHT S.A. para a campanha eleitoral do acusado nos pleitos de 2010 e 2014, os quais, alega-se, não teriam sido contabilizados na prestação de contas apresentadas para esta Justiça Especializada.
Também é importante destacar que os relatos foram prestados por funcionários da iniciativa privada, sem vinculação laboral ou funcional com a Administração pública e com possíveis adversários políticos do réu, pelo que ausente, a priori, a ocorrência de denúncias maliciosas, realizadas com o mero intuito de prejudicar a imagem pública de detentor de mandato eletivo.
A propósito, conforme já anunciado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o conteúdo dos depoimentos colhidos em colaboração premiada não é prova por si só eficaz, tanto que descabe condenação lastreada exclusivamente neles, nos termos do art. 4º, § 16, da Lei 12.850/2013. São suficientes, todavia, como indício de autoria para fins de recebimento da denúncia (INQ 3.983, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, DJe de 12.05.2016).
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Não obstante, podem esses elementos servirem de substrato a lastrear ação penal. No caso, vislumbra-se lastro probatório mínimo de materialidade e autoria do delito de falsidade ideológica atribuída ao denunciado Raimundo Colombo, o que é suficiente para afastar a ausência de justa causa.
Ademais, como é próprio do processo penal, o acusado terá ampla chance de provar em juízo, se for o caso, a sua inocência. Penso que a busca pela garantia da ampla defesa não derroga outros valores democrático-constitucionais.
Isso posto, rejeito igualmente a preliminar de ausência de justa causa.
Em conclusão, estão devidamente preenchidos os requisitos elencados no art. 41 do Código de Processo Penal, já que a peça acusatória descreve fatos configuradores, em tese, do crime imputado na denúncia, indicando as circunstâncias fáticas de sua prática, bem como os indícios capazes de apontar a autoria da conduta.
6. De outro norte, inexistem quaisquer das causas capazes de justificar a absolvição sumária do réu (CPP, 397).
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Com efeito, não há que se falar na manifesta configuração de quaisquer das causas excludentes da ilicitude do fato, elencadas pelo art. 23 do Código Penal.
Também é inequívoco que o réu possui plena capacidade de entender o caráter ilícito da conduta imputada, afastando a alegação de eventual causa excludente de culpabilidade.
De igual modo, como já afirmado, o comportamento de omitir na prestação de contas valores financeiros que foram arrecadados e utilizados para custear despesas de campanha configura, em tese, o crime capitulado pelo art. 350, do Código Eleitoral, de acordo com a mais recente jurisprudência.
Por fim, não se verifica a presença de causa determinante de extinção da punibilidade.
Ainda que o fato supostamente criminoso diga respeito às eleições de 2010 e a denúncia somente tenha sido recebida no ano de 2018, tem-se que, a partir do início da vigência da Lei n. 12.234, de 05.05.2010, não deve ser mais considerado, para fins de apuração da prescrição antes do trânsito em julgado da condenação, o período compreendido entre a data da consumação do crime e a do recebimento da denúncia, nos termos da atual redação do § 1º do art. 110 do Código Penal.
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Dentro desse contexto, seria juridicamente viável dar prosseguimento à ação penal com a produção das provas requeridas pelas partes.
7. Contudo, tenho por apropriado e necessário dirimir, desde já, a questão processual relacionada à ausência de manifestação do Ministério Público Eleitoral sobre a proposta de suspensão condicional do processo, sob pena dessa omissão ensejar a futura alegação de nulidade do processo.
Destarte, como a acusação imputa tão somente a prática do crime de falsidade eleitoral (CE, art. 350), o qual é reprimido com a pena mínima de 01 (um) ano (CE, art. 284), o réu faria jus, em tese, à concessão do referido benefício, nos termos do art. 89 da Lei n. 9.099/1995.
Como não houve manifestação expressa na denúncia sobre esse aspecto, o Promotor Eleitoral necessita ser intimado para tanto, devendo expor obrigatoriamente os motivos de eventual recusa.
A respeito, convém rememorar que, embora a suspensão condicional do processo não constitua direito público subjetivo do acusado, constitui poder-dever do Ministério Público, titular da ação penal, o qual está obrigado a posicionar-se sobre a possibilidade de aplicação ou não do referido instituto, devendo sempre manifestar-se a respeito.
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Consoante firme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “nos crimes de ação penal pública, somente o Ministério Público é legitimado a ofertar a suspensão condicional do processo, devendo fazê-lo de forma fundamentada, permitindo, assim, o controle da legalidade da proposta ou de sua recusa pelo Poder Judiciário” (RHC n. 80.170/MG, DJe 05/04/2017, Min. Jorge Mussi).
No mesmo norte, a posição do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 129346, DJe de 10.05.2016, Min. Dias Toffoli.
8. Posto isso, presentes os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal e ausentes quaisquer das hipóteses dos artigos 395, incisos I, II e III, e 397, incisos I a IV, do mesmo diploma referido, recebo a denúncia que descreve, em tese, crime eleitoral de falsidade ideológica para fins eleitorais, capitulado no art. 350 do Código Eleitoral.
Outrossim, determino a intimação do Ministério Público Eleitoral para que se manifeste sobre a possibilidade de sua proposição ou justifique o motivo pelo qual deixa de apresentá-la, nos termos do art. 89 da Lei n. 9.099/1995.
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Após, voltem conclusos para análise das questões relacionadas à fase instrutória.
Intimem-se as partes.
Florianópolis, 9 de agosto de 2018.
Juíza Maria Paula Kern.