Leia a íntegra da decisão corajosa e histórica do desembargador Helio do Valle Pereira sobre a greve dos servidores de Florianópolis:

“DECISÃO MONOCRÁTICA INTERLOCUTÓRIA
1. Este processo trata de greve por parte dos servidores públicos municipais.
Já realizei três audiências de conciliação, além de outro encontro informal ontem à noite no meu gabinete. A penúltima reunião, aliás, chegou a um promissor encaminhamento: as partes ajustaram os termos para o encerramento do movimento. Houve, é verdade (e isso foi dito expressamente pelos representantes da categoria), uma condicionante: a homologação ficaria dependente da ratificação de assembleia – o que não se confirmou. Tenho que houve, naquele instante, uma postura muito elevada dos intervenientes, que mediante concessões encontraram um ponto de equilíbrio que propiciaria a retomada dos trabalhos.
Era, mais do que uma esperança, praticamente uma certeza de que a greve se encerraria.

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2. Ontem, porém, houve o registro (já notório) de que a assembleia não referendou o posto na ata de audiência. Havia um impasse em particular: a perspectiva de descontos em relação a servidores temporários. A questão não fora tratada na audiência; melhor, nem sequer havia sido cogitada (não sob os meus olhos, pelo menos). É, de fato, um aspecto delicado. Era prevista a possibilidade de os servidores realizarem compensação, é evidente, futura; mas um número significativo de funcionários teria seus contratos extintos em muito breve, não havendo possibilidade de trabalho adicional. Eis então que documento agora o evento que (noticiei linhas antes) se deu em meu gabinete quando estavam representantes dos dois polos. Na oportunidade afirmei que o ali conversado não seria objeto de juntada aos autos; estava-se dialogando, não se firmando compromissos. Ocorre que está nos jornais de hoje – diria o cronista do passado: está nas folhas – o que se tratou na noite anterior em termos reservados (e com conclamação enfática para a discrição). Tornou-se notícia. Não há por que, ante o fato novo, deixar de abordar o assunto com explicitude.

Ratifico a minha compreensão em face da possibilidade de compensação de dias não trabalhados por ACTs. Em essência, trata-se de reconhecer que uma negociação relativa ao encerramento de uma greve tem contornos constitucionais. Greve é prevista na CF e se trata de uma solene convocação para a negociação. Logo, o objetivo da Constituição é propiciar um ajuste entre as categorias profissional e econômica. Será uma típica transação, no sentido mesmo de direito civil, com concessões recíprocas. Um instituto dessa magnitude não pode ser compreendido em termos ordinários. Há um interesse superior no sentido de as partes convergirem. Logo, creio que seja jurídico afirmar que os ACTs, no caso de renovação dos contratos, ainda que burocraticamente surja uma nova matrícula, possam ser abrangidos por compensação. Seria apenas dar interpretação ampliativa àquilo que as partes ajustaram em audiência, mas com a perspectiva de adição de decisão judicial quanto à validade da conduta. É o posicionamento que de viva voz externei ontem aos representantes das partes e agora referendo. É possível ao juízo homologar eventual proposta de encerramento da greve que inclua perspectiva de compensação favorável aos ACTs.

3. Ocorre que, apesar da possibilidade de se avançar quanto ao dito ponto, o sindicato noticiou outras restrições em ofício que circula abertamente, o que em termos práticos se resume à extinção deste processo. Quer-se o afastamento de todo desconto pela paralisação e revogação da – vou chamar assim – “Lei das Organizações Sociais”.
Quanto ao dois primeiros assuntos, os termos do ajustado em audiência foram, vou repetir, muito promissores. Há uma liminar que foi descumprida e a dívida, em tese, é milionária. Houve uma redução extraordinária, e os R$ 40.000,00 que deveriam ser pagos foram convertidos em ações sociais. Admitiu-se amplamente a compensação, ainda que se insistindo em descontos muito modestos (que se efetivarem adiante).
São proposições mais do que razoáveis. 

Aqui, então, cabe uma advertência. A greve é garantida constitucionalmente, mas não se pode dizer que haja uma potestatividade, um direito ao alvedrio dos interessados a rumar por essa trilha. É um direito; mas algo tão grave que deve ser exercido com sensibilidade aos demais fatores envolvidos. No caso, são serviços públicos; a greve não deve vir em prejuízo da população; A partir daí, trago o assunto pertinente à OSs. Ora, aqui se tratou de uma opção feita pelos Poderes Executivo e Legislativo. Um juízo político (usada a palavra em sentido nobre). Não é aceitável que se use de uma greve para coagir a municipalidade a diligenciar a revogação de uma Lei. Se for assim, políticas estatais passariam a ser deliberadas em praça pública, dando-se a prerrogativa ao funcionalismo de sustar eternamente a prestação de serviços públicos.
Poderia escrever muito sobre o tema. Não que fizesse arrazoado com qualidade, mas gostaria de expor com mais minudência o que penso. Não será possível neste instante, todavia, pela premência, mas creio que a essência do que interpreto sobre o tema esteja posta.

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4. Fui muito comedido ao deliberar nestes autos. Vários pleitos para recrudescimento das medidas contra a greve não foram abordados por mim. Foi intencional; desejava que as partes atingissem o entendimento. Não queria que decisão judicial servisse de alento à beligerância, de um lado ou de outro. Chegou-se, entretanto, a uma situação inusitada. A rua Tenente Silveira está ocupada. É a principal da área central de Florianópolis. Pessoas dormiram lá. Postos de saúde funcionam precariamente. Há crianças há um mês sem aula. Campanha de vacinação é prejudicada. A reposição das aulas não será jamais plena em sua qualidade. 

A greve prejudicada por demais a população. Não era essa, é claro, a intenção do Sindicato, mas acabou se chegando a esse infeliz resultado.
A categoria tem suas convicções; devem ser ouvidas, ponderadas.
Só que essas convicções sempre serão uma perspectiva; há outras que não podem ser vaticinadas previamente como erradas. Sinto-me em alguma medida como testemunha do desenrolar da greve, haja vista o que ouvi nas audiências. O movimento era contra as OSs, depois vindo secundariamente questões relativas à “data-base”. Houve aquiescência quanto aos temais funcionais, praticamente não surgindo dissintonia. Mas a paralisação permanece, mesmo havendo lei sobre as organizações sociais e um acordo muito favorável ao funcionalismo. A se propiciar a continuidade da greve alunos e doentes é que serão os prejudicados.

5. A partir do momento em que a categoria, mesmo com os termos muito aceitáveis do acordo preliminar firmado em audiência e com a possibilidade de superação do impasse relativo aos ACTs, se mantém em greve (pois há outros pontos noticiados como insuperáveis) não tenho mais confiança em esperar a solução consensuada que eu pretendia desde o início. 

6. Há liminar em vigor para que os serviços de assistência social, educação e de saúde sejam restabelecidos.
Não foi cumprida e não posso mais crer que será espontaneamente.
A multa aplicada não cumpriu seu efeito dissuasório.
É evidente que me causa desconforto uma aparente censura à atividade sindical, mas todas as oportunidades para superar o impasse foram dadas. Migrou-se para uma radicalização que não convinha a ninguém e o Judiciário tem que decidir. Opto por aqueles que estão sendo prejudicados concretamente, os usuários dos serviços públicos (ou pretendentes a usuários). 

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Amplio por isso os meios indiretos para reforçar a decisão liminar e faço, em alguma proporção, até de ofício:

a) Determino a aplicação do Sistema Bacenjud para apreensão do valor suficiente para fazer frente à multa até agora vencida (R$ 3.000.000,00).

b) Igualmente determino que cessem os repasses de recursos do Município de Florianópolis ao Sindicato.

c) Ratifico a legitimidade dos descontos de vencimentos pelos dias não trabalhados, bem como proíbo que o Município realize creditamento em relação aos servidores grevistas até que haja nova deliberação judicial.

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d) Autorizo que as faltas ao trabalho sejam consideradas para todos os fins funcionais, inclusive para instauração de reprimendas administrativas ou de cessação dos contratos temporários.

e) Amplio a responsabilidade patrimonial pelas reprimendas ao sindicato em desfavor dos seus dirigentes, que responderão solidariamente.
A ampliação agora ditada valerá a partir de sábado, caso se confirme que a greve não se encerre hoje, sexta-feira.

Autorizo que a Polícia Militar promova a desocupação de espaços públicos que estejam sendo objeto de ocupação indevida, mesmo transitória, pelo movimento grevista (ruas, prédios públicos ou situações assemelhadas). É evidente que as manifestações ordeiras como as que ocorrem na Praça Tancredo Neves são lícitas e não se submetem a esta decisão. Intimem-se pelo regime de plantão. Florianópolis, 11 de maio de 2018. 

Desembargador Hélio do Valle Pereira – Relator”