Cerca de 10 anos atrás, estudei em Londres com uma professora inglesa de pele diáfana, com quem eu passava as tardes em conversação, a fim de me aprimorar no idioma de Shakespeare. Entre vários assuntos, falávamos também sobre vida pessoal. Várias vezes ela mencionou o namorado, um economista. Planejavam se mudar para Ibiza assim que ele terminasse o doutorado. Só no último dia de aula ela mostrou a foto do moço, e me dei conta que eu sempre o imaginava como sendo branco.

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Corta para semana passada, quando voltei de uma temporada carioca e postei nas redes algumas fotos de encontros com amigos. Atenta, a escritora e atriz Elisa Lucinda, com quem também me encontrei, enviou um áudio zombeteiro para meu WhatsApp: “Descobri através das suas fotos no Instagram que sou sua cota no Rio”. Ela tem intimidade suficiente comigo para disparar essa flecha, e que bom que o fez.

> Não existe história muda

Anos atrás, Elisa, que é negra, gravou uma entrevista contundente, falando de como pessoas brancas entram em um restaurante onde só tem brancos e não percebem que há algo errado com isso. “Se tem territorialidade, tem apartheid”, denunciou ela.

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Hoje vemos negros e pardos em plateias de teatros, em concertos de piano, dentro de aviões, mas o número ainda é infinitamente inferior à metade que lhes cabe em representatividade, uma vez que são mais de 50% da população. É um avanço contar com Gaby Amarantos e Emicida apresentando programas de tevê, ver elencos de novela menos desiguais, modelos negras nas passarelas e propagandas, mas ainda é cota. Elisa é uma amiga que a arte me deu. Ela não foi minha colega no colégio, não a conheci na academia de ginástica, não frequentamos a mesma sala de espera do médico, ela não foi minha cunhada, não chefiou departamentos nos locais em que trabalhei. Quem se atreveria a dizer que “apartheid” é um exagero?​

> O sorriso que o tempo nos deu

Vim da classe média alta do Sul do país, o que explica meu quase inexistente contato social com negros, mas isso não me aliena da luta contra o racismo, ao contrário. Sei que cabe ao governo diminuir a desigualdade, mas e a parte que cabe a nós? Refletir sobre os nefastos condicionamentos culturais que herdamos é urgente. Se alguém comentar sobre uma empresária que está se destacando no mundo dos negócios, é básico supor que ela seja negra, assim como a terapeuta que uma amiga nos recomenda, assim como o economista por quem minha professora se apaixonou. Qual o espanto?

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O mundo não é dos brancos, o universo produtivo e intelectual pertence a todos. É constrangedor escrever essa obviedade, é vergonhoso, mas expor as fissuras comportamentais de uma criação apartada dos negros e de sua história também é uma forma de reparação. Elisa, toque aqui.

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