Esta é uma crônica para ser lida ouvindo Bach. Essa é uma crônica que trocou o massacre das notícias diárias pela Suíte número 1 para Violoncelo. Essa é uma crônica instrumental que está nascendo às sete horas de uma manhã em preto e branco. Chove.
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Coloquei o celular no silencioso. Afasto o mundo de mim. Aproximo de mim meu universo. Aceito, finalmente, que ninguém jamais me compreenderá, não me conhecem por dentro.
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Estou por um instante a salvo da vulgaridade. Enterneço. Percepções imprecisas se transformam em poesia. Wagner. De repente um coral começa a cantar. Me transporto. Aconteceu uma vez de eu entrar numa pequena igreja de uma vila italiana e eles estavam lá, dialogando com os deuses bem na minha frente. A beleza secreta de ser uma intrusa. Meu silêncio, minha rendição, e aquelas vozes.
Sem espalhafato, o céu desse início de manhã se torna cinza claro, e encontro no meu escuro algo que não estava procurando. Choro.
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Violino. Não sinto nenhuma revolta. Estou em casa como tenho estado poucas vezes, apesar de estar sempre aqui. Estou em casa como se não tivesse saído jamais de dentro de mim. A janela está aberta, o dia está molhado, mas não sinto frio. É meu lugar de pausa.
Estou em segurança nessa tranquila solidão. Piano. Parece um castelo vazio, o palco de um teatro, a trilha sonora de um filme, mas sou eu, apenas, me escutando.
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Calma. Sei que o sossego dessa inércia não vai durar, que as horas seguintes violarão a sacralidade que há nos recolhimentos, que alguém irá me chamar e terei que dar respostas, analisar contratos, cumprir o combinado. Por enquanto, fecho os olhos. Este momento ainda é só meu.
Liszt. Chopin. Debussy. Inspiro no profundo de mim, longamente. Expiro. É como se eu me despisse inteira para desconhecidos. O dia inaugura assim, musical, sem emergências. Não há o que possa me doer.
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A vida não é real. Vida é fascínio, êxtase, elevação. A realidade tem a respiração curta, anda rente às calçadas. Falta pouco para o barulho da obra ao lado começar e me tirar dessa paz sem esforço. Erik Satie. A rotina está chegando perto como eu não queria que chegasse, ainda não. Me dê mais cinco minutos.
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Parou de chover, mas segue nublado. Réquiem. Pertenço a esse gênero de música também, a clássica. A essa desaceleração, a essa epifania. Sou uma orquestra de vários instrumentos, nem sempre intensa. Volto amanhã, quando despertarei cedo outra vez, antes da violência dos hábitos. Minha funcionária acaba de chegar. Os operários da obra já manejam seus guindastes e betoneiras. Meu celular não está mais no silencioso. Camille Saint-Saëns é interrompido pelo interfone, Brahms é cortado pelo sinal de WhatsApp. Preciso ir.
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