O calhamaço de mais de mil páginas que Richard Zenith publicou sobre Fernando Pessoa é o Grande Sertão das biografias. Foge à regularidade documental – é a dissecação minuciosa de uma personalidade que nunca se deixou conhecer plenamente, nem para si mesmo. Abri o livro sabendo pouco sobre sua vida íntima, e foi como embarcar numa montanha-russa de espantos.
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O primeiro deles foi descobrir um biógrafo desapaixonado pelo personagem que lhe coube desvendar, mas, felizmente, apaixonado por seu ofício – é um trabalho soberbo. Zenith conseguiu chegar muito perto de uma alma torturada e ao mesmo tempo se distanciar de sua dor. O livro se chama Pessoa, no singular, mesmo Fernando tendo sido tão múltiplo. Os heterônimos eram experimentos de uma identidade inalcançável. “Esculpi a minha vida como uma estátua de matéria alheia ao meu ser”.
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Pessoa flertou com o racismo, a homofobia, a misoginia. Sexo o apavorava. O amor lhe era estranho. Ficava desconcertado com manifestações de afeto. Teve uma única namorada, sem relações íntimas – nunca teve com ninguém, que se saiba. Era um fingidor? Nunca um poema desnudou tanto um poeta. Procrastinador serial, iniciava um sem números de projetos sem concluí-los jamais. Preguiçoso e inapto para questões práticas, era um homem de ideias, não de realizações. Mais ligado em astrologia do que em psicanálise, não procurou ser aclamado em vida, mas era obcecado pela glória na posteridade – o que veio a alcançar, e talvez isso renda outra crônica.
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Fernando Pessoa intuía o que seu destino confirmou: há parentesco entre genialidade e loucura. Sentia-se completo emprestando sua voz a criaturas imaginárias. Só assim conseguia existir: não sendo ele. Acomodava-se bem à sensação de não pertencimento. É aí que a leitura me abala: reconheço sua neurastenia, ao mesmo tempo que me identifico com seu alheamento. Compartilho do mesmo defeito de fabricação, que em mim se manifesta de forma não radical. Quem se acomoda à solidão tem a vantagem (muito questionável, eu sei) de nunca se desiludir e nunca decepcionar ninguém. Como ele, também já escrevi poemas sobre o tema, em uma modesta contribuição que não chega aos pés do mestre.
Fernando Pessoa vivia fora de si mesmo, sem recorrer a chás de cogumelo, peiote ou qualquer outro alucinógeno. Era o que ele chamava de “existência pessoal como nação independente”, algo que poucos almejam – e quem alcança, sofre as consequências de um julgamento atroz.
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Enfim, o maior poeta português foi um experimentalista que usou a própria vida como objeto de investigação, e haja oxigênio para acompanhar esse mergulho. “Pessoa” é uma biografia obrigatória não para meros bisbilhoteiros, mas para quem tem fôlego para submersões perturbadoras.
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