Miguel Flores é um meteorologista célebre em Buenos Aires, que nunca errou uma única previsão em 20 anos de carreira e acaba de ganhar um programa de tevê só seu, em horário nobre. Mas justo na estreia, quando ele comunica que aquela noite será de céu limpo e temperatura amena, desaba uma tempestade de granizo sobre a capital argentina, destruindo carros, ferindo pessoas, matando cães. É o suficiente para o meteorologista ir do céu ao inferno. Passa a ser ofendido por vizinhos e vê seguidores sumirem das redes, assim como o prestígio. Desolado, volta à terra natal, Córdoba, para repensar a vida.

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Este é um breve resumo de Granizo, filme meio cômico, meio sentimental, meio absurdo, que me fez refletir sobre nossa dependência da aceitação dos outros. No início dos anos 2000, o estudante Mark Zuckerberg fundou uma rede social chamada Facebook e elevou a autoestima de milhões de carentes no mundo. Qualquer ex-colega do jardim de infância passou a ser chamado de “amigo”. A plataforma substituiu as valiosas relações interpessoais, mas deixou essa esmolinha: “Olha só quanta gente adora você”.

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Somos seres intrinsicamente solitários em busca de uma razão para existir, e essa razão pode estar no trabalho, na religião, na família, na política e até no isolamento – desde que o sumiço não seja radical. Não precisamos de uma multidão, bastam algumas pessoas com quem possamos estabelecer, ao vivo, a troca essencial de respeito, escuta e afeto. O problema é que manter laços profundos com um pequeno grupo exige sabedoria e humildade, e já nem todo mundo tem a prática. Sabedoria não se baixa num aplicativo e humildade está em desuso desde os anos 1980. É mais fácil atrair um milhão de amigos virtuais e se deixar enganar pela falsa popularidade.

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E assim vamos substituindo relacionamentos por “contatos”. A cada postagem, estimulamos fantasias a nosso respeito e viramos presas fáceis da bajulação. Até que essa ilusão se esfarela, é só dar uma opinião enviesada ou frustrar uma expectativa. Que golpe para o nosso narcisismo: sermos cancelados por amigos que nunca vimos. Vou trocar a ironia fina por uma frase de para-choque de caminhão: quem não nos conhece, não nos adora. Simpatiza conosco à medida que entregamos o prometido, o previsto, mas no primeiro desapontamento, adeus, amor. Vida que segue.

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Granizo é um filme leve, disponível na Netflix, que nos lembra que mais vale se relacionar de verdade com um único parente do que de mentirinha com milhares de desconhecidos. Sabemos disso, mas quem resiste, hoje, a cultivar a própria plateia? A divertida cena final mostra que a vaidade não poupa ninguém: até os ermitões querem conquistar o coração de estranhos.

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