Ela procurava um apartamento de dois dormitórios que não ficasse prensado entre outros prédios. Lavabo, mármore, suíte, nenhum desses luxos estavam na lista de exigências, e nem o orçamento permitiria, mas precisava se sentir acolhida pelo novo lar. Foi quando me disse que havia encontrado o apartamento dos sonhos. Perguntei onde. Ela deu o endereço: ficava na esquina de duas ruas movimentadas da cidade. Se vidros antirruídos não estiverem na lista de exigências, pensei, ela não levará a ideia adiante. Não estavam, mas ela levou.
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Pediu que fosse encontrá-la no apartamento para analisarmos juntas. Quando estacionei o carro, ela já estava na calçada em frente, me esperando. O corretor havia lhe entregue as chaves. Não tínhamos muito tempo, ela precisava devolvê-las. O prédio ficava na esquina de duas ladeiras. Carros zuniam na descida de uma delas, e quando viravam à direita, aceleravam fundo para subir a outra. Você tem certeza? Ela não me escutou. Mas sorria muito.
Subimos as escadas até o primeiro andar. Enquanto ela se desdobrava para encontrar a chave certa, perguntei: “A cozinha é boa?”. Ela respondeu: ”Acho que é”. Ela já havia recusado outras opções de imóveis com cozinhas minúsculas, e agora achava que a desse apartamento era boa, sem demonstrar que se lembrasse dela. De onde vinha aquele sorriso de ganhadora da Mega-Sena?
Abriu a porta e entrou primeiro. Entrei depois. Percebi de imediato o chão de tabuão. Não estava muito danificado. “Olha”, ela disse. Eu olhei. Havia uma janelão gigante na sala. E por trás dela, uma árvore do tamanho das nossas fantasias. Aquele apartamento não precisaria de quadros. Muito menos da cortina que ela intencionava colocar. A árvore espetacular quase entrava sala adentro. Tudo mais era supérfluo. Cozinha? Que importava? (ainda assim, era espaçosa). “Agora você me entende?”, ela perguntou. Pedi para ela repetir a pergunta por causa do barulho e só então respondi: “entendo”. À noite o trânsito diminuiria, nos fins de semana daria uma trégua. Mas a árvore estaria sempre ali.
A árvore espetacular quase entrava sala adentro. Tudo mais era supérfluo. Cozinha? Que importava?
Esteve ali por 11 anos. Mais valiosa que um Van Gogh original. Até que semana passada, recebi o telefonema da dor. Ela caiu! Minha árvore caiu! Não foi pelas mãos do homem, nem pela ação do vento. Velha, doente, cansada, a imensa árvore tombou de repente, por sorte não caiu em direção ao apartamento, mas para fora, levando junto os fios de luz e os postes. Morte súbita.
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Fui visitá-la. Pela primeira vez, vi a cortina fechada. Por que fechada? “Pra não enxergar a ausência”, ela me respondeu. Tinha razão. Eu nunca havia reparado no prédio do outro lado da rua, cinza, mórbido. Antes, havia o verde e a vida. O apartamento perdeu a alma. A inquilina, inconsolável, se contenta, agora, com uma cozinha espaçosa.