Saudades do particípio. De quando uma etapa era vencida. Uma crise, superada. A coisa acontecida. Agora é esta estrada que não acaba, este mistério que se alonga. Tudo se arrastando como um rio no meio da tarde, como a formação de uma onda preguiçosa, como o passo de uma girafa em câmara lenta. 

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Estamos remoendo ideias e escrevendo uma parte da história do mundo. Povoando nossos sonhos com criaturas esquisitas. Alongando pensamentos, inventando verbos, espichando os dias e se perguntando: até quando?

Nenhum ponto final à vista. Nada, coisa nenhuma concluída, feita, resolvida. Ainda estamos aprendendo a lidar com os medos novos e com um futuro que, teimoso, não chega, ao contrário, olha lá ele, se afastando.

Talvez estejamos perdendo a calma – perdendo vagarosamente, pois ela ainda não está de todo perdida. Sempre há um restinho de serenidade sobrando.

Os dias não começam nem terminam, eles vão se somando.

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As horas não se diferenciam umas das outras, vão se misturando.

O dia vai se enamorando da noite, a noite vai seduzindo as manhãs: promiscuidade de um tempo que não se define, prefere ir se enroscando.

Nenhum ponto final à vista. Nada, coisa nenhuma concluída, feita, resolvida.

Antes fazíamos aniversário. Em 23 de abril, 18 de maio, 11 de junho. Mas já não há mais datas marcadas, não há o antes e o depois destacados no calendário dos dias. Agora estamos continuadamente envelhecendo, de forma mansa e esparramada. O corpo da gente se gastando e o coração insistindo, batendo, batendo.

O frio e o calor andam transando. Ouço-os gemendo.

Tiro o blusão depois do almoço, recoloco o blusão ao entardecer, acumulo cobertas e no meio da noite acordo suando, abro a janela e parece que vai chover, parece que não vai, a terra continua girando ao redor do sol e o inverno está brincando de se esconder.

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Ando telefonando em vez de digitar mensagens. Ando lendo livros que já li. Ando doando roupas que não uso mais. Ando vestindo as mesmas camisetas. Ando matutando tanto. Ando gerundiando que nem sei. São muitas vozes me chamando de dentro do silêncio, e eu, alerta como nunca, ando me escutando. 

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As emissoras de rádio e tevê seguem transmitindo boletins diários, e de madrugada ainda tem gente postando. Volta e meia, aproxima-se alguém vindo da extrema realidade, pedindo: dá uma moeda, alcança um pedaço de pão? Tudo segue doendo, e na região central do país, onde se resolvem os problemas, nada e coisa nenhuma se revezam: permanecem banalizando as responsabilidades e destruindo, desde o início, o que um dia foi começado. Pouco se tem enfrentado, debatido, solucionado, como deveria fazer quem fosse bem preparado.

Danado, sumido. Saudades do particípio.

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