Você chega na cidade em que nasceu, se hospeda na casa da sua irmã e vai até o supermercado comprar alguns ingredientes para o jantar. Aproveita para comprar sorvete, que sua irmã incluiu na lista, e fica feliz de poder fazer essa gentileza a ela, uma retribuição pela acolhida.

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No corredor do super, encontra um ex-namorado, seu primeiro grande amor, com quem teve um relacionamento 20 anos atrás e cujo desenlace deixou alguns fios soltos. Depois de uma vacilante troca de palavras, ele te convida para um café. Seu marido e filhos estão lá na cidade onde você mora, a quilômetros de distância. Ora, é só um café.

Esse é o início do filme “Blue Jay”, disponível na Netflix. Quando a personagem aceitou o convite, a primeira coisa que pensei foi: o sorvete vai derreter. A segunda foi: por que raios fui lembrar do sorvete?

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Porque, apesar de já ter feito progressos, ainda tenho muito a evoluir no quesito “vou pensar em mim e que o mundo se exploda”, também conhecido, afetuosamente, por “foda-se”. É uma questão cultural que herdei de casa. As amigas da minha mãe sempre contavam, entre gargalhadas, a longínqua ocasião em que elas propuseram um programa de última hora, sem chance de planejamento, e minha mãe respondeu: “mas hoje é o dia em que troco os lençóis”.

Esse foi o cenário da minha infância. Sair da rotina, repentinamente, atendendo ao apelo excitante da vida, era algo que perturbava. Desconsiderando o exagerado exemplo dos lençóis, acho que perturba muitas outras pessoas também. Ainda mais quando o apelo está relacionado a amor e sexo.

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Cada hora continua tendo os mesmos 60 minutos que tinha no século 17, mas a impressão é que a vida tem passado feito um rato na sala, como dizia o saudoso Domingos Oliveira. Um dia somos adolescentes, no outro estamos debatendo a menopausa. Nem todo mundo encontra ex-namorados dentro de supermercados, mas a cena serve como metáfora: há momentos que exigem um confrontamento com as escolhas que fizemos, que nos colocam cara a cara com aquilo que preferíamos não saber, não remexer. É típico do destino: às vezes ele mexe as peças do tabuleiro só para nos pegar de surpresa, a fim de testar nossa coragem, curiosidade e abertura para saltos sem rede, o velho e conhecido “ver qual é”. Quantas vezes você evitou se jogar? Apego à rotina também?

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A renúncia de viver aquilo que tem potencial para nos desacomodar costuma ser um bom plano de previdência, uma garantia de futuro tranquilo, mas não demorará até que o olhar opaco denuncie a covardia. Você concorda que os relógios entraram em desacordo com o tempo e aceleraram os ponteiros? Você mal acordou e já é quase noite? Então deixe para trocar os lençóis amanhã e danem-se os sorvetes.

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