O Zé andava esgotado, pudera. Nas últimas décadas, o mundo parecia ter virado de cabeça para baixo. Quando ele era criança, o pai saía para trabalhar e a mãe ficava em casa cuidando dele e dos irmãos. Zé conhecia poucos negros, e fazia piadinhas sobre eles sem ninguém se importar. Quando se tornou um rapaz, logo descobriu que havia as garotas para transar e as garotas para casar. Todos tinham a família ideal, a vida ideal. Quem inventou de mudar o rumo dessa história?

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Zé não imaginava que seria tão cansativo acompanhar as mudanças de costumes. De repente, tinha que reconsiderar o valor dos negros, respeitar todas as mulheres, se responsabilizar pela poluição do ar e dos mares, aceitar que um homem se apaixonasse por outro homem, que uma esposa não quisesse ter filhos e que filmes sobre prostitutas não fossem pornográficos. Mais 10 anos nessa toada, corria o risco de virar um cara civilizado. Ainda bem que foi salvo a tempo.

Pronto, pronto. Ninguém mais vai obrigar o Zé a evoluir. Zé pode continuar com os preconceitos, não será mais incomodado. Não precisa nem mesmo ocultá-los. Está autorizado a dizer tudo o que pensa, sem se importar se vai ofender, constranger, humilhar alguém. Tampouco precisa falar e escrever direito, quem dá bola para isso? Só uma coisa importa: a economia. Dinheiro no bolso. Virá. Prometeram. Por enquanto os investidores estrangeiros sumiram, o dólar disparou, mas as reformas foram feitas, é sentar e aguardar. Deixa o homem trabalhar.

Quando se tornou um rapaz, logo descobriu que havia as garotas para transar e as garotas para casar.

Enquanto o Brasil não vira uma superpotência, o Zé passa as horas livres jogando sinuca, conversando sobre baboseiras, atirando em quem mexe com a patroa (ou na própria patroa, se ela quiser se mandar), dando uma coça nos filhos que não forem “ideais”, acreditando que a vida é o que acontece até o limite do muro do quintal. Livros? Ciência? Pesquisa? Patrimônio histórico? Cultura? Conhecimento? Educação? Servem para nada. Zé frequenta a igreja e deixa lá 10% do salário, a pedido dos pastores, que falam em nome de Deus. É suficiente para garantir o futuro.

Zé está dando uma banana para quem não concordar com ele. Não precisa mais saber se comportar. Pode saudar em público um torturador, pode adotar a filosofia nazista como sendo dele, pode distribuir medalhas a assassinos, pode espalhar fake news, pode falar besteira, pode rejeitar esse mundo moderninho que tentam lhe enfiar goela abaixo. Não tem mais nenhum motivo para ser culto ou bem informado. O exemplo vem de cima, ele agora tem em quem se inspirar.

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Livros? Ciência? Pesquisa? Patrimônio histórico? Cultura? Conhecimento? Educação? Servem para nada.

Um alívio para o Zé. Em vez de avançar, se instalou no limitado universo da ignorância e da mediocridade, e nunca foi tão feliz. Bendita hora que Cazuza provocou: Brasil, mostra tua cara.

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