22 de maio de 2020, 17h06m. Estava desde o início da manhã em frente ao computador tentando escrever um novo texto, mas não conseguia digitar uma única palavra. Alegar falta de assunto, impossível. Não dá para dizer que o mundo anda um tédio, tudo indica que o apocalipse se avizinha, e os terrores são sortidos, basta conferir os sites de notícias, jornais, telejornais. Então o que estaria acontecendo que eu não conseguia me manifestar sobre nada? Foi quando me dei conta de que havia sido vítima de estelionato: a inspiração foi apenas a primeira falta que percebi, mas o butim era bem maior.

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Levaram também minha inocência. Fico envergonhada de admitir, mas eu ainda tinha alguma. Não dá para se entregar às evidências o tempo inteiro, a gente acaba ficando cínica em relação à vida. Eu tinha um restinho de inocência no bolso, para alguma emergência. Ela me fazia pensar: vá que não sejam tão dementes, vá que prestem para alguma coisa. Naquela tarde, vi que meu bolso estava vazio.

Levaram também minha inocência. Fico envergonhada de admitir, mas eu ainda tinha alguma.

Além da inspiração e da inocência, passaram a mão no meu discernimento. Já não sei o que é bom ou ruim pra mim. Cheguei a fantasiar uma ruptura. Abandonar as redes sociais, vender meu apartamento e meu carro, desistir de ser colunista, me mudar para um local distante e viver para a leitura, as caminhadas e as visitas dos amigos. Aí concluí: seria uma involução. Sei que já não sou garota, mas desistir desse jeito? Ainda há projetos a realizar e é importante me manter ativa na profissão que escolhi. No segundo seguinte, concluí o oposto: seria uma evolução. Cultivar a paz de espírito longe do caos urbano, se distanciar da toxidez da política, me alimentar melhor, ouvir música, falar menos: é preciso ficar velha pra isso? Continuo sem resposta.

Eis a razão deste B.O. que discrimina minhas perdas. Não sei bem a quem acusar. O capitalismo? O fascismo? O comunismo?

Gostaria que um inquérito fosse aberto e, se possível, reaver o que me foi tirado. Não é pouco. Eu vivia melhor. Eu era mais alegre. Reconhecia os problemas do Brasil, mas ainda gostava de morar aqui. E também achava que seria feliz morando em certas cidades do mundo. Agora nenhum lugar me parece ideal – a não ser a tal casa isolada em algum ponto distante: fantasias resistem a qualquer vírus.

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A idiotice e a ignorância assumiram a chefia e ninguém parece interessado em me ressarcir da ausência de algo belo em que continuar acreditando. Meus olhos estão secando com a luz azul dos celulares. As pessoas andam desiludidas e com medo de apertarem-se as mãos. Os teatros estão vazios. E ninguém mais conversa sobre o amor. Faltava mais nada, roubarem também meu romantismo.

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