Mais uma vez a pandemia e o isolamento provocam uma volta ao passado. E se você está cansado de ouvir, ver ou ler quase tudo sobre o coronavírus, eu peço licença para prosseguir viajando com a minha e a tua imaginação…

Continua depois da publicidade

Nasci num Circo Teatro de propriedade dos meus pais. Penso que isso eu já lhes contei algumas vezes. Era um circo voltado prioritariamente para o teatro e shows musicais, portanto não fazia uso de animais em seus espetáculos. Muito embora na época isso fosse normal em grandes circos, no Circo Teatro Motinha e Nhá Fia os únicos “animais” éramos nós mesmos. Talvez por isso eu tenha desenvolvido uma relação muito amistosa com os poucos animais domésticos que nossos artistas carregavam cidade-pós-cidade, numa convivência carinhosa e humanitária. Quase todas as famílias do Circo tinham um animal de estimação.

Nosso cão chamava-se Lorde e era um Pastor Belga Groeneldel de pelo negro, tão calmo quanto firme na defesa do patrimônio de meus pais. Era ele quem guardava à noite, as laterais do Circo, na tentativa de impedir que a criançada furasse o “pano de roda” (no nosso caso, a estratégia era fazer um buraco sob os painéis de alumínio que cercavam o circo pela volta toda) e entrasse sem pagar ingresso.

Confesso que nunca confiei muito nessa “dureza” do Lorde, pois quase sempre aqueles garotos mais pobres estavam lá dentro nas arquibancadas, enquanto o Lorde “inteligentemente” fazia uso da estratégia de demorar-se mais de um lado do Circo, do que do outro por onde os meninos entravam por sob a parede lateral do pavilhão. Durante o dia, enquanto os outros artistas ensaiavam seus números, eu me divertia com meu “cão-corcel” negro, prendendo todos os bandidos do “velho oeste” e cavalgando no dorso sem sela do meu grande amigo. Sim, porque o Lorde virava cachorro apenas a noite.

E quando cresci um pouco mais, atingindo um peso corporal que ele já não conseguia transportar, minha compreensão desta nossa relação também já havia crescido o suficiente para que eu percebesse que ele era só um cão. Ou melhor, o melhor e mais inteligente cão do mundo.

Continua depois da publicidade

Foi quando chegamos em Pirapozinho (Alta Sorocabana em São Paulo) e ele foi atropelado na porta do Circo. Presidente Prudente, o maior município da região ficava há pouco mais de 20 quilômetros e sobre uma caminhonete, eu e meu pai tentamos levá-lo ao veterinário que só havia lá na cidade grande. No meio do caminho ele não mais se mexia na carroceria e eu, de joelho sobre o banco da cabine, acompanhava sua agonia pelo vidro traseiro do veículo, matando um pouquinho da minha ingênua concepção de “vida eterna” para os que eu amava e amo. Mas ele continua “vivo” em minha memória e na figura do labrador que meu filho trouxe para casa muitos anos depois, e que por estranha coincidência também recebeu dele o nome de Lorde.

> Dois cachorros são resgatados pelos bombeiros durante incêndio em Blumenau

A partir de então comecei a compreender o que hoje sei cada vez mais a cada dia: que os animais são capazes de sentir prazer, dor e sofrimento. E que as pessoas que foram sensibilizadas para estar conscientes das sensações e sentimentos de outros seres, têm ou deveriam ter, maior probabilidade de pensar sobre os efeitos de seus atos. A educação humanitária não trata apenas da obtenção de conhecimento, mas também do desenvolvimento de atitudes positivas e de zelo.

Isto é particularmente importante com respeito a animais e ao seu bem-estar, já que esta é uma área frequentemente negligenciada em muitos sistemas educativos. Tendo adotado atitudes de zelo, os alunos devem agir desta forma ao longo da sua vida. Assim, serão capazes de tomar decisões baseadas na informação e na compaixão. E que quando pessoas interagem com animais, têm a responsabilidade e em geral o dever legal de zelar pelo seu bem-estar. Essas mensagens são a essência do objetivo educacional das principais organizações mundiais de proteção animal – estimular a compaixão, o senso de justiça e o respeito pelos animais e pelas pessoas. O bem-estar animal é também fundamental para as pessoas e o meio-ambiente.

> Cão resgatado após atropelamento será encaminhado para adoção em Florianópolis

Com alguns conhecimentos básicos e compreensão dos princípios fundamentais de bem-estar animal, as pessoas poderão entender e vir a apreciar o papel que todos podemos exercer para melhorar a vida dos animais em todo o mundo.

Continua depois da publicidade

Os grupos de bem-estar animal usam uma lista para avaliar se um animal está feliz e saudável e você também pode fazer isso. Todas as cinco liberdades precisam ser atendidas. Um animam bem-alimentado, por exemplo, pode vir a sofrer se estiver muito frio. Seu animal deve estar livre de fome e sede, de desconforto, de dor, ferimento e doença, de medo e angústia e livre para expressar seu comportamento natural.

Esse último item significa que devemos entender as necessidades comportamentais de nossos animais de estimação e dar a eles a oportunidade de expressá-las. Por exemplo, em vez de tentar impedir que um gato arranhe portas, dê a ele um poste forrado com corda de sisal, próprio para esse fim. Conceitos simples, mas fundamentais numa relação de respeito entre seres humanos e os demais animais. E quando os humanos conseguem compreender o “sentido” desses conceitos, parecem desenvolver ainda mais a capacidade de “sentir” emoções advindas dessas relações especiais.

Há algum tempo, escrevi o prefácio de um livro de contos (Eternos Abarés, Ed. Associação Abaré Proteção Animal) escritos por um grupo de pessoas, cujo fio condutor de suas vidas é exatamente esse respeito pelos animais, reunidos numa Associação cujo nome é exatamente “amigo” – Abaré em Tupi-Guarani, e que resolveram fazer um pouco mais do que sentir. O grupo registrou seus sentimentos em contos ou declarações de amor e respeito a essas pequenas criaturas que lhes fez ou ainda fazem tão bem.

> Em tempos de pandemia, o presente que é um alívio para a alma

Eternos Abarés - você encontra o livro no site Estante Virtual, que reune sebos de todo o país.
Eternos Abarés – você encontra o livro no site Estante Virtual, que reúne sebos de todo o país. (Foto: Arquivo DC)

E independente da qualidade literária com que se expressam (muito embora os contos sejam ótimos), o mais importante está no registro da incrível capacidade de amar de maneira incondicional de cada um. E essa forma de amar eles aprenderam com essas criaturinhas a quem dedicaram seus contos, suas crônicas, suas emoções.

Continua depois da publicidade

Como nos diz o palestrante e professor José Luiz Tejon: “Quem ama evolui. Evolução significa progredir através das virtudes. Virtude é a firme determinação e convicção da prática do bem. Isso requer vontade, decisão. A alavanca da ação é a coragem. E chegamos à essência da superação: o prazer pelos obstáculos, jamais paralisar de medo. O amor pela evolução dota o ser humano da coragem e a pessoa apaixonada caminhando no rumo certo, torna-se imbatível”.

> Nossas lembranças são imunes ao vírus?

Ai está a atual patota lá de casa.
Ai está a atual patota lá de casa. (Foto: Arquivo da família)

Ao escrever aquele prefácio, voltei no tempo e retomei meus mais puros sentimentos infantis (e mais tarde, adultos) pelo meu primeiro Lorde (pastor do Circo) e pelos atuais: Lorde (labrador), Lady (uma Waimaraner recolhida da rua quase sem forças para caminhar de tão fraquinha), pelo Pupy (o shitzu mais calmo do mundo, trazido de Lages no planalto serrano e cuja data de “aniversário” curiosamente é a mesma que a minha – 25 de março), do Biscoito (trazido por minha filha Maria Carolina ao saber da morte do irmãozinho dele o Bauduco, e da solidão em que ele ficaria naquele abrigo para animais) e o Hulk (um Dog Francês que chegou por último através do meu filho Mario Aleixo e que completa o time). Sim, temos cinco cães convivendo conosco em paz e harmonia (nem tanto, quando resolvem latir juntos por um motivo torpe).

> E a gente só sente saudades de coisas boas né?

Eles comprovam nossa evolução através do amor incondicional. O verdadeiro e depreendido amor que damos e recebemos dos animais.