Lá estava ele no meio do nada, procurando um tal Lourenço que garantiram, teria a solução para suas dores. Depois de buscar tratamento em todos os cantos possíveis, restou-lhe apenas a fé, e por ela a crença de que um benzedor pudesse dar jeito em sua coluna. E lá estava ele no meio do nada em busca do que, na sua vida, era tudo naquele momento.

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Muitos quilômetros rodados mato adentro, por um trilho que lhe disseram chamar estrada e que lhe fazia pensar: "Se os buracos são tantos, de onde vem tanta poeira?" Pelo trajeto, sob o escaldante sol de dezembro atrás do tal Lourenço, cruzara com cavalos, bois e alguns poucos seres humanos.

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Até que ao parar para abrir uma porteira, a dúvida que o caminho impunha o empurrou até uma elevação, onde um velho caboclo sentado num banquinho tirava o leite de uma vaquinha escanzelada.

– Bom dia, meu senhor!

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– Bão dia pru sinhô tomem – respondeu-lhe o caboclo.

– Estou procurando um tal Lourenço. Disseram que ele mora por aqui.

– Si fô o benzedô, o sinhô tá pertim. Mais duas léguas e o sítio dele fica às esquerda.

– Puxa vida, até que enfim. Já faz quase três horas que eu estou na estrada e preciso voltar logo.

– Oceis da cidade parece escravo du relógio, né mermo?

– É verdade, o Senhor tem razão. E por falar nisso, meu relógio parou, o senhor tem horas?…

E foi aí que tudo aconteceu…

De cócoras ao lado da vaquinha, o velho peão se abaixou um pouco mais, passou a mão no úbere do animal, empurrou para cá e para lá e depois de um breve espaço de tempo lhe disse com absoluta firmeza:

– Farta doze minutos prás oito horas.

Só faltava isso…

Ele, que imaginara ter visto de tudo na vida, não podia crer que a sabedoria popular iria lhe pregar mais uma peça. O que levara aquele peão, ao apalpar as tetas de sua vaquinha, afirmar com toda a segurança do mundo, que para as oito horas faltavam certeiros doze minutos?

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Mesmo assim, não discutiu. Não tinha argumentos.

Ainda incrédulo, agradeceu e seguiu em busca do Lourenço Benzedor.

E agora, além da descrença de que a tal reza poderia lhe curar, em sua cabeça estava também o relógio da teta da vaca.

A benzedura fez tão bem que ele decidiu continuar o tratamento pelo menos com mais umas duas sessões.

Três dias depois, lá estava ele pela segunda vez.

E nas mesmas circunstâncias: o peão tirando leite, o cumprimento, o pedido pela hora certa, o apalpar na teta da malhada e, na mosca – de novo a hora certinha (conferida disfarçadamente, agora com o relógio devidamente funcionando) só fazendo crescer sua incredulidade.

Mais três dias e pela terceira vez de novo o cenário – ele, o peão e a vaca. Era aquele o último da benzedura que já provocara reações positivas suficientes para colocar numa sinuca de bico sua descrença de certas coisas imateriais. Sem querer buscar explicações para a fé, imaginou ser possível pelo menos tentar compreender como o velho caboclo aprendera a ver hora certa na teta da sua vaquinha malhada.

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:- Olá meu amigo, tudo bem? Não quero atrapalhar a sua ordenha, mas gostaria de lhe perguntar, pela última vez, que horas são por favor?

:- Dez prás nove – disse ele, não sem antes apalpar novamente a teta da malhada.

Depois de confirmar no relógio – dez para as nove – ele não se conteve e perguntou como ele conseguia aquela maravilha? De que maneira a sabedoria popular lhe ensinara a ver com tamanha precisão as hora e os minutos pelo úbere de uma ruminante?

Foi quando o velho caboclo lhe explicou com a simplicidade dos felizes:

:- Nada disso meu cumpadi. É que se eu num tirar a teta da vaca da frente, num consigo enxergá o relógio da torre da igrejinha no povoado lá embaixo, tá vendo?

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PS: Causos como esse povoaram minha infância e ainda hoje moram no imaginário das camadas mais populares dos brasileiros.

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